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Educação do Campo é reconhecida como direito pelo município de Paraty

Junto com a assinatura do decreto que estabelece normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas para a Educação do Campo no município, 2019 traz também a formatura das primeiras turmas de estudantes do nono ano nas escolas da costeira.


Pela primeira na história de Paraty, nas comunidades caiçaras do Pouso da Cajaíba e da Praia do Sono estão se formando turmas do segundo segmento do ensino fundamental (nono ano). Isso mesmo, é a primeira vez que, dentro desses territórios centenários de lutas e resistência caiçara, que as crianças e jovens não tiveram que deixar suas comunidades para estudar. Ainda não é possível mensurar o tamanho dessa conquista que envolve muitas pessoas, grupos, parceiros e coletivos que se uniram em defesa da educação diferenciada.


Durante o “Seminário da Educação Diferenciada”, realizado no último dia 13 de dezembro, no Sesc Santa Rita, os resultados dos trabalhos realizados pela parceria entre a Secretaria Municipal de Educação, o Instituto de Educação de Angra dos Reis (IEAR - UFF) e o Colégio Pedro II, com apoio do Coletivo de Apoio à Educação Diferenciada do Fórum de Comunidades Tradicionais em Paraty e do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS) foram apresentados para professoras, professores, estudantes e demais pessoas que marcaram presença no dia. Além disso, foi assinado o decreto que estabelece a educação do campo como parte integrante das demandas educacionais do município.


Participam do Coletivo de Apoio à Educação Diferenciada representantes do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), da Universidade Federal Fluminense (UFF), do Programa de Educação Ambiental (PEA), entre outros.

“Eu faço parte do FCT e esse é um dia de mais uma concretização da educação caiçara, indígena e de tantos outros povos que viveram e ainda vivem marginalizados pelos governos, e somos povos que detemos esse direito de existir pelo nosso espaço. Em nenhum momento retrocedemos e temos muitos capítulos para contar. Estamos construindo um marco legal histórico neste município, através dessa luta, desse enfrentamento”, conta Jadson dos Santos, liderança caiçara da Praia do Sono. Ele apresentou parte do contexto da luta pela educação das comunidades caiçaras e salientou também que tudo foi construído com as parcerias entre a academia e movimentos sociais como o MST e a Via Campesina para fortalecer essa pauta no território.


"Estou com 60 anos e eu ajudei a colocar o primeiro tijolo da escola do Pouso da Cajaíba. Fizemos muitas coisas até que, em 2007, começamos a falar da implementação do segundo segmento na costeira. Agora isso se tornou uma realidade", compartilha Francisco Xavier, conhecido como Ticote, permacultor caiçara e liderança do Pouso da Cajaíba.


"Estou muito feliz com os resultados do trabalho. Esses quatro anos foram muito bons, vemos o que acontece quando os alunos têm oportunidade de estarem imersos num currículo criativo crítico diferenciado, adequado ao contexto da sua realidade cultural, e como isso faz muito mais sentido do que aqueles conteúdos programáticos soltos", pontua Lício Monteiro, professor do Iear da UFF que integra o Coletivo de Apoio à Educação Diferenciada.


"Hoje é um dia de plenitude, de ancestralidade, e finalmente, a gente hoje, depois de muita luta, conquistamos esse marco. Passamos por novos percalços, criamos o coletivo de apoio à educação diferenciada. Foi muita gente que junta concebeu esse sonho que está se realizando aqui hoje e aí a gente só tem a agradecer e pedir força para a gente continuar a luta, porque a luta não para. Estamos aqui celebrando uma coisa que é muito importante que é a categoria da educação no campo. Isso é só o começo de mais lutas. Estamos muito felizes e conscientes e temos muito amor no coração e muita competência pra fazer", disse Laura Maria, griô do quilombo do Campinho de Paraty.


"Esse seminário faz parte do projeto pedagógico "Uma outra história de Paraty", um dos projetos trabalhados dentro das escolas da costeira. Teve como objetivo apresentar esse projeto e apresentar o programa de educação diferenciada para a rede municipal, tanto o que vem sendo feito, quanto as perspectivas atuais para trazer mais professores para trabalhar na educação diferenciada", explica Indira Alves França, coordenadora de Gestão de Saberes do OTSS. Segundo ela, o evento também culminou todo o processo que vem sendo construído sobre a educação, a formação das primeiras turmas de nono ano e com a assinatura do decreto em que a Secretaria Municipal abraça oficialmente a proposta da educação diferenciada.


Educação do Campo agora é lei em Paraty


“Na prática esse documento significa que o município de Paraty dá respaldo jurídico legal para que as escolas sejam caracterizadas como escolas do campo. Já sabemos que as escolas caiçaras gozam desse guarda-chuva jurídico que possibilita acessar recursos federais, legitimar apoios, uma vez que há diretrizes regulamentadas pelo MEC que possibilitam a construção de currículos diferenciados”, ressalta o professor Domingos Nobre, do Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense (Iear/UFF).


"Eu fico muito feliz de entregar ainda esse ano de 2019, lembrando que não conseguimos fazer nada sozinhos, a gente só faz se estiver junto. É isso que vai beneficiar e mudar a vida de uma comunidade. Não se trata de uma simples assinatura, mas sim de mudar a vida de Paraty. Quando garantimos que as crianças fiquem em suas comunidades é garantia da cultura, evitar especulação imobiliária, significa que a luta vale a pena, porque o FCT, as comunidades lutaram por isso. Isso não é mérito meu não, é mérito de vocês que estão nessa luta. Muito obrigada pela oportunidade de, como educadora que sou, estar aqui entregando isso", salienta Gabriela Gibrail, secretária de Educação do Município de Paraty.


Prática pedagógica pensada junto com a comunidade


“No cotidiano de uma escola diferenciada, os conteúdos programáticos são colocados em último lugar, eles têm que estar a serviço do que achamos que precisa estar na escola, juntos os professores com os alunos e a comunidade. Fazemos uma junção da metodologia freiriana de temas geradores e partimos para a criação dos projetos pedagógicos. Junto disso tudo, temos um projeto de pesquisa que estamos acompanhando como os currículos caiçaras, indígenas e quilombolas estão sendo construídos", afirma o professor Domingos.



"Começamos com 3 professores, várias dificuldades, as comunidades também fazem parte desse grande legado de colonização e como romper isso, é um processo muito difícil. Não podemos ter uma visão que as comunidades são a margem do grande capital, elas estão para servir o grande capital. Haja vista as nossas comunidades que fizeram essa eleição. Estamos pretendendo chegar a um patamar muito maior. Estamos falando de criar universidade nos territórios, formar nossos educadores, temos vários trabalhos em várias comunidades, fazendo construção, para acessar nossos direitos", complementa Jadson.


A verdadeira história de Paraty é contada pelas crianças e jovens caiçaras


No mês de julho de 2019, os estudantes do Sono e do Pouso da Cajaíba apresentaram o resultado de um dos projetos pedagógicos realizados nas escolas da costeira. Chamado “Uma outra história de Paraty”. E, eles produziram livros em cordel contando as histórias de suas comunidades e falando aquilo que não consta nas obras “oficiais”. Esses livros foram lançados durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). “Estivemos como autores nesse espaço que pouco valoriza o povo local, demos autógrafo, lançamos os livros e não estivemos somente naquela posição passiva de ouvir. Invertemos isso e os nossos alunos foram os atores principais”, compartilha Iaci Sagnori, professora e militante desse movimento pela educação.


"Quando o processo está acontecendo, perdemos a noção de quantas coisas estão acontecendo, amplitude do trabalho, na vida dos alunos, dos anciões que participaram. A partir desse projeto mudou toda a minha perspectiva em relação ao meu trabalho, a experiência de estar participando da educação diferenciada, desenvolver isso nas comunidades. Acho que depois desses 4 anos de experiências não conseguiria voltar para aquilo, cada um dentro da sua caixinha. Um dos objetivos desse momento é convidar amigos e parceiros que queiram vir junto com a gente, precisamos de mais professores juntos", conta Iaci.


Revolução dentro e fora da escola


"Ter autonomia para desenvolver projetos, pensar o currículo é revolucionário, ser tratado como ser pensante, entender o que a comunidade pretende com a escola e o que você pode oferecer, muda radicalmente a sua prática, não ter que obedecer o que está no livro didático, virar uma máquina de reprodução, isso mata sua reflexão, sua criatividade, isso é um dos principais pontos que faz a gente acreditar no trabalho que a gente faz: montar um currículo junto com a comunidade, quais as expectativas dentro da escola, entender e desenvolver isso com os alunos tendo autonomia entre pais, comunidades, alunos", reforça Iaci.


"É o futuro que vemos ali, para não perdermos as nossas raízes, com esse tempo que estamos vivendo hoje, e acreditamos que não vai ser fácil futuramente, nossos jovens, as crianças poderem manter todo esse conhecimento dos mais velhos, é uma coisa muito rica que temos. Lá no início, quando tínhamos nossos avós, o cacique João da Silva que fez essa iniciativa, a gente era proibido de frequentar a escola do juruá porque poderia estar levando nossos povos para um lugar sem volta. Poderíamos perder toda nossa cultura, nossa religião, nosso modo de ser. Quando eu era pequena minha mãe não deixava eu ir pra escola porque a minha mãe tinha medo de me mandar porque falavam que isso poderia acabar comigo, matar no sentido espiritual. Por isso a gente não ia. Com o tempo, percebemos que temos aquela necessidade de entender o mundo do juruá para que a gente saiba falar, saiba se defender de igual pra igual. Por isso vimos que há necessidade sim de haver uma educação diferenciada para ter sentido para as comunidades", contextualiza Ivanildes Kerexu, liderança do povo guarani mbya na aldeia Rio Bonito de Ubatuba e integrante do FCT.


Ivanildes conta também que agora, no ano de 2019, a primeira turma de ensino médio escola e indígena foi formada nas aldeias de Ubatuba. "A luta da sociedade é isso, estar sempre de mãos dadas, lutando em prol do outro", completa.




Texto: Vanessa Cancian/ Comunicação OTSS

Fotos: Eduardo Napoli/ Comunicação OTSS

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