A tradição dos conhecimentos passados de geração em geração e toda a relação com a espiritualidade negra fazem parte da luta pela soberania alimenta e nutricional dos povos de matriz africana. Kota Mulanji (Regina Nogueira), médica e presidente do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana (Fonsanpotma) fala sobre o assunto e sua história de vida.
"Alimentar é a representação da troca, quando eu recebo devolvo alimentando, ou quando espero, alimento primeiro, ou quando agradeço, alimento. Alimentar é estar vivo, quando não mais alimento já morri para esta tradição", diz Kota Mulanji. Reza, cuidado com a natureza, compartilhamento, respeito aos mais velhos, escuta, oralidade, conhecimento, alimentação e tradição. Kota Mulanji é o nome espiritual de Regina Nogueira, médica e presidente do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana, e vem falar para todos que estiverem abertos a ouvir sobre a história da luta do povo negro e de matriz africana para que as tradições alimentares sejam garantidas no Brasil.
O movimento que ela integra, chamado Fonsanpotma, aborda o comer como uma fonte inesgotável de conhecimentos sagrados e ancestrais que se multiplicam dentro dos terreiros e casas de axé. As plantas, os cultivos, as formas de comer e de compartilhar cada alimento dentro da tradição de matriz africana englobam o sagrado, o rito e a continuidade da religiosidade negra. Em entrevista para o OTSS, a liderança conta sua história de vida e sua caminhada na medicina e nos movimentos de luta anti-racista.
Quem é a Kota Mulangi?
Neste território de Zazi e de caboclo e nos braços de meu pai Angorô nasci Mulanji a combatente e fui feita Kota Ambelai a mãe que ensina a rezar – olha minha tarefa combater rezando. Até agora só tenho combatido e não cumprido completamente. Tenho rezado pouco, tenho cuidado pouco de mim e do território, da unidade. Sou hoje uma combatente do mundo pela água e pela vida dos corpos, continuo sendo médica intensivista em São Paulo e tenho o consultório que é o Espaço Potencial de vida no centro de São Paulo e coordeno nacionalmente o FONSANPOTMA (Fórum nacional de segurança alimentar e nutricional dos povos tradicionais de matriz africana) há 8 anos. Se tivesse de resumir tudo isto hoje diria: Sou Regina Nogueira, uma gaúcha de Pelotas, médica pediatra intensivista, sou uma autoridade do povo tradicional de matriz africana Bantu, sou Kota Mulanji Mona Kelembeketa.
De que forma o alimento se configura para os povos de matriz africana?
Alimentar pode se dizer que é o núcleo da filosofia do pensar africano, de qualquer um dos povos sequestrados em África e que resistiram na diáspora, mesmo dentro de sistemas opositores, escravocratas, mantiveram língua, e visões de mundo, ou seja, dos povos tradicionais de matriz africana. Alimentar é a representação da troca, quando eu recebo devolvo alimentando, ou quando espero, alimento primeiro, ou quando agradeço alimento. Alimentar é estar vivo, quando não mais alimento já morri para esta tradição. Alimentação tradicional de matriz africana inclui produzir, comercializar, beneficiar e consumir de forma ritualística e doméstica, familiar para subsistência e sem objetivar lucro, daí eu tenho um alimento sacralizado que é capaz de me dar equilíbrio biológico, mítico, mental, social, ou seja, da saúde.
A escravidão e a colonização em África fez com que povos originários e os tradicionais de matriz africana, para manter esta tradição, para manter sua vida, fossem adaptando rituais que tornaram-se eventos para o beneficiamento e o consumo da alimentação mas estrategicamente nos afastaram da produção e da comercialização do alimento. Então hoje o alimento se configura numa das maiores desterritorializações da tradição de matriz africana na diáspora forçada, mas por isto também uma das lutas comuns deste povo e contra estes povos. A marginalização desta forma de alimentar está ligada diretamente ao interesse da preservação da terra, da produção do alimento em agronegócios, envenenados e a serviço do capital.
Como fazer com que a sociedade compreenda e respeite esses símbolos e modo de vida?
Os povos tradicionais e comunidades tradicionais são espaços que se contrapõem a sociedade dominante. São pessoas e espaços que estão na contramão do pensamento dominante em que vivem, então esta relação não vai ser tranquila, e sempre uma disputa de pensamento. Nossa tradição não busca a hegemonia, mas o respeito e o reconhecimento de que existimos neste lugar de resistência. O que fazer lutar por uma sociedade respeitosa em relação a todas diferenças, na minha opinião.
O que é o FONSANPOTMA? E quais são as campanhas que estão em ação no momento?
O FONSANPOTMA é o fórum nacional de segurança alimentar e nutricional dos povos tradicionais de matriz africana. Um fórum com 9 anos de existência que debate e promove ações e propõe políticas públicas para garantir uma alimentação que dê segurança biológica e mítica ao seu povo, respeitando as diferenças regionais da diáspora forçada, e que busca mais do que segurança e soberania alimentar. A gente tem duas campanhas ativas atualmente: a primeira que chama "Tradição Alimenta, Não Violenta", – que objetiva divulgar este sistema alimentar descrito acima e busca formas de obtermos soberania como povo e recupera a produção, comercialização, beneficiamento e manter o consumo adequado da alimentação. Esta campanha também quer demover a campanha de criminalização do nosso sistema alimentar tradicional.
A segunda campanha se chama "Sagradas Mulheres Águas" e tem o objetivo de preservar as águas e as mulheres das constantes violências sofridas e visibilizar o conceito de água para estes povos. Demonstrando como, mesmo frente a um sistema opositor, temos perseverado. Objetiva a nacionalização do dia de Kaia (água salgada para os Quimbundo), Aziri (deusa que habita o fundo do mar para os Ewe Fon) e Yemonja ( a origem dos seres e o mar para os Yorubá).
Qual a relação da campanha "Tradição Alimenta, Não Violenta" com a luta pela garantia da soberania alimentar e nutricional dos povos de matriz africana?
Estabelece a possibilidade de fazer pontes com outros movimentos dos direitos à alimentação e direitos humanos. Estamos fazendo articulações com movimentos contra o agrotóxico (não violência e biodiversidade), com os pequenos agricultores, quilombolas (na luta para a produção para subsistência, proteção a terra e não ao lucro desmedido) e a recuperação dos valores para além dos símbolos. A nutrição para nós não está ligada apenas aos oligoelementos e valor nutricional dos componentes, está ligado diretamente ao poder de equilíbrio do biométrico, daí ter controle da produção e da comercialização é fundamental.
De que forma a cultura ocidental pode e deve aprender com os nossos conhecimentos?
Esta cultura ocidental, que busca o lucro desmedido, que extrai tudo da terra, da água e das pessoas em benefício de alguns tem levado a catástrofes ambientais, a guerras que devem acirrar a luta pela terra e pela água. Este é um sistema que tem um objetivo nítido de que só alguns tenham acesso a algumas coisas e a maioria fica com o que resta. E um sistema com desenho piramidal em que muitos poucos estão acima e uma massa suporta tudo.
As pessoas que estão acima não querem e nem vão se dispor a aprender. O que acredito que a massa que suporta tem de parar de acreditar e querer subir. Sempre que algum sobe os que já estavam acima garantem que muitos ficaram abaixo porque o que sobe trata de não deixar abrir concorrência. E que nem escola de samba tem o grupo especial o de acesso 1, 2, geralmente quem sobe mais do que tenta ir para o topo trata de não deixar quem subir fazer eles descerem. Este formato de competição não é a base do carnaval, o que o ocidente teria de aprender era simplesmente desfilar para se divertir.
Neste caso a cultura a ser vencida é a do excedente, buscar ter o suficiente para a troca para alimentar. Para aprender é necessário querer e entender que o ensinamento vai servir para você. E também acreditar que não sei. A cultura ocidental, os que destruíram e escravizaram saberes da cultura de matriz africana, dos países do sul, eles não querem ser diferentes.
A nossa luta é fazer com os que são oprimidos, explorados por esta cultura, conheçam os dois sistemas e tenham daí a possibilidade de escolher. E como a matriz, a pílula azul e vermelha.
Sofremos perseguição diariamente e o nosso alimento é condenado por culturas que se consideram "evoluídas". Como evidenciar o racismo que existe nesse contexto?
Desconstruindo, descolonizando pensamentos e fala. As práticas que tentam demonstrar que tudo que é branco é bom, mostrando o estrago que o açúcar, o sal, a branquinha, a cocaína, que não existe gente terrível (do terror), existe sim terrorismo – genocídio, que a bala não é perdida mas plantada no ambiente, que podem matar quem o poder quer que mate. Que as doenças são fruto do lucro de alguns. Quem vende o salgadinho vende também o remédio da hipertensão. Tenho de deixar de acreditar que eu vou subir e levar outro. Não, eu vou e subjugar quem fica abaixo, tenho de parar de dizer que tenho curso superior, reconhecer que o curso é universitário e não superior a ninguém.
Temos de traduzir o que fizemos e porquê, para isto é necessário saber. Daí o intercâmbio com os povos originários africanos, pesquisadores e pensadores destes povos é fundamental. Temos de continuar vivos, ou seja, produzindo, reproduzindo e circulando.
Nosso alimento é o que eles querem para eles, o que eles não querem é entregar a produção e comercialização destes para os donos deste saber. Eles, os brancos, os do topo da pirâmide, os que lucram, querem continuar ali se alimentando do que nós produzimos e não do que eles mandam produzir. De alguma forma desejo o mesmo, quero me alimentar do que produzo e posso devolver a eles o que eles me mandam produzir.
Como você vê o trabalho da Fiocruz, maior instituição de saúde do Brasil, na promoção da nossa soberania e segurança alimentar e nutricional e, sobretudo, na luta antirracista?
Uma vez em Cuba vi um discurso de Fidel e ele dizia que quando temos um problema social deveríamos ir na tradição mais antiga e que lá estaria a solução. A Fiocruz é um espaço de produção de conhecimento em relação à saúde no Brasil. Ela diagnostica problemas sociais que levam à falta de saúde ou ao adoecimento da população e, com esta expertise, sabe que as doenças crônicos degenerativas que são ainda uma das maiores causas de mortalidade e de maior morbidade no Brasil teriam na produção de alimentos e na alimentação saudável sua maior ação de prevenção destas doenças e de garantia de qualidade de vida.
A Fiocruz sabe que o Brasil ainda não ultrapassa alguns países do norte em doenças geradas por uma alimentação adoecedora pela presença maciça, ainda no Brasil, de povos originários, povos tradicionais e comunidades tradicionais, aspectos regionais diferenciados e uma enorme diversidade presente neste país.
Texto: Vanessa Cancian/Comunicação OTSS
Foto: Arquivo pessoal /Kota Mulanji
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