Rancho Caiçara: território de cultura, resistência e ancestralidade
- Déborah Gérbera
- há 2 dias
- 4 min de leitura
Mais do que abrigo de canoas e redes, o rancho é um espaço vivo que une pescadores e pescadoras, remadores e remadoras, comunidades tradicionais em torno da cultura, da fé e da preservação do modo de vida caiçara.

Um lugar de encontro e de memória
Para as comunidades tradicionais, o Rancho Caiçara é um espaço de grande importância cultural e simbólica. Local de encontros, festividades e trocas de saberes, é onde acontece o celebrar, o dialogar e o manter viva a ancestralidade que conecta o povo ao mar.
Ao longo do ano, o espaço abriga festas, corridas de canoa, fandangos, bailes e oficinas, reunindo pessoas de diversas comunidades. Cada encontro reforça o sentido de pertencimento e a continuidade dos saberes que formam a identidade caiçara.
“O rancho é um espaço muito importante para a comunidade tradicional, para a pesca artesanal e para os grupos folclóricos de danças típicas. É onde todo mundo se reúne, pescadores e pescadoras, remadores e remadoras, famílias e até gente de outros estados. É um território de cultura e união.”— Chico Caiçara, da Almada (Ubatuba/SP)

Um centro cultural à beira-mar
No bairro do Perequê-Açu (Ubatuba/SP), o Rancho Cultural Caiçara Antônia dos Santos Mariano leva o nome de uma mulher que marcou a história local, e esse vínculo afetivo se reflete em cada atividade que acontece ali.
O espaço é gerido pela AARCCA (Associação de Amigos e Remadores da Canoa Caiçara) e pelo grupo de capoeira angola Peregrinos, funcionando como um verdadeiro centro cultural comunitário.
Lá acontecem ensaios de maracatu, rodas de capoeira, danças tradicionais e religiosas, encontros de grupos culturais, além de eventos e oficinas de artesanato. O rancho também abriga reuniões de associações, encontros do Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) e ações de fortalecimento da cultura local.
“Falar do rancho, para mim, tem um carinho especial, porque o rancho leva o nome da minha avó, então tem um afeto muito grande em falar dele. O rancho foi pensado para ser um centro cultural mesmo, para fortalecer as atividades do nosso território. É ali que a gente mantém vivas as tradições, fortalece a nossa identidade e nossas vivências culturais.”— Larissa Mariano, caiçara do Sumidouro (Ubatuba/SP)
Rancho Cultural Caiçara Antônia dos Santos Mariano / Perequê-Açú - Ubatuba/SP
O rancho como símbolo de resistência
Mais do que um ponto de convivência, o rancho é também um símbolo de resistência territorial. Diante das pressões da especulação imobiliária e do avanço sobre os territórios costeiros, o rancho se afirma como um marco de presença e de identidade coletiva.
Na Praia do Pulso, no Quilombo da Caçandoca (Ubatuba/SP), o rancho representa a luta por direitos, cultura e permanência. Não é apenas o abrigo das redes e dos remos, mas o espaço que guarda a história e a dignidade de um povo.
“O rancho quilombola, o rancho caiçara e, por que não, também o rancho indígena, têm hoje o significado de resistência territorial. Com o avanço da exploração imobiliária, o território vai se perdendo, e o rancho se torna um aspecto de resistência. O rancho é parte estruturante de um direito sobre o território.”— Jurandir, Quilombo da Caçandoca (Ubatuba/SP)
Rancho Praia do Pulso / Quilombo da Caçandoca - Ubatuba/SP
Quando o rancho já não existe, mas o sonho resiste
Em outras comunidades, o espaço do rancho já não existe mais fisicamente, mas continua vivo na memória e no desejo de quem reconhece sua importância. É o caso da caiçara e artesã Angélica Santos, que sonha em reconstruir esse lugar de pertencimento e partilha.
“Meu sonho é ter um rancho de pescadores onde eles possam guardar as redes, sentar, conversar. Um lugar onde eu possa expor meus quadros, contar minhas histórias, me vestir de caiçara, com minha saia de renda, meu vestido de fuxico, lenço na cabeça, fazendo café, cozinhando peixe com farinha. Quero trazer a comunidade para perto, manter viva a nossa tradição, para que as crianças também vivam essa história e aprendam. Se eu tivesse um rancho na beira da praia, seria um meio de mostrar que a história não morreu, que a história vive.”— Angélica Santos, caiçara e artesã do Camaroeiro (Caraguatatuba/SP)
Rancho Praia do Camburi - Ubatuba/SP
O rancho como memória e patrimônio vivos
O sonho de reconstruir, manter ou proteger os ranchos é também o sonho de preservar uma forma de vida. Esses espaços, feitos de madeira, areia e marés, guardam séculos de sabedoria e convivência com o território, representando o elo entre gerações, o ponto de encontro entre trabalho e celebração, fé e resistência.
Mais do que estruturas físicas, os ranchos são patrimônios vivos das comunidades caiçaras, quilombolas e indígenas: lugares onde o saber tradicional se manifesta na prática cotidiana, no mutirão, na conversa, na música, no preparo do peixe.
Cada rancho tem sua força e seu jeito de permanecer: há os que resistem firmes, os que nasceram como centros culturais e aqueles que seguem vivos na lembrança e no sonho de quem deseja reconstruí-los.
Em todos eles pulsa o mesmo espírito de continuidade, a certeza de que a história caiçara não se perdeu, apenas se transforma e se renova com o tempo e com o mar.
Porque, enquanto houver quem reme, quem pesque, quem ensine, quem conte e quem cante, o rancho seguirá existindo, presente, vibrante e cheio de vida, nas comunidades, nas marés e nas memórias que não cessam de retornar.
Texto | Fotos: Déborah Gérbera (OTSS/Fiocruz)



















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