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Do território para a política pública: automonitoramento fortalece pesca artesanal e mantém viva a tradição nas comunidades

  • Foto do escritor: Caroline Nunes
    Caroline Nunes
  • há 7 horas
  • 6 min de leitura

“O automonitoramento contribui para preservação ambiental dos recursos marinhos, mostrando que a pesca artesanal é  sustentável”, destaca Vítor Fernandes

Imagem mostra um homem pescando em um barco, segurando uma linha de pesca no alto,
Créditos: OTSS

A pesca artesanal é mais do que uma atividade econômica: é uma prática ancestral que fortalece a soberania alimentar das comunidades, promove saúde física e mental e gera renda para os territórios tradicionais. No Brasil, estima-se que existam cerca de 1,4 milhão de pescadores e pescadoras, sendo que mais de 99% atuam na pesca artesanal, responsável por quase 60% do pescado produzido no país, segundo dados do Ministério da Pesca e Aquicultura.


Apesar da relevância socioeconômica, a atividade enfrenta um desafio: como monitorar a pesca artesanal de forma eficiente, garantindo que os dados sejam acessíveis às comunidades e possam subsidiar políticas públicas?


Nesse contexto, o automonitoramento surge como uma estratégia inovadora. A Frente de Pesca Artesanal do Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) –parceria entre o Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina e a Fiocruz– tem desenvolvido esse trabalho, permitindo que pescadores e pescadoras participem ativamente do registro e da gestão das informações sobre sua própria atividade.


Entre os marcos normativos recentes, a Portaria nº 1.455/2022 merece destaque. Embora não altere diretamente as regras da pesca artesanal, garante que existam profissionais e órgãos formalmente capacitados para fiscalizar e supervisionar a atividade, fortalecendo a segurança jurídica e criando condições para que o automonitoramento seja realizado de forma mais eficiente.


Para aprofundar o tema, o OTSS conversou com Vítor Fernandes, caiçara de Picinguaba (Ubatuba/SP), militante da Frente de Luta da Pesca Artesanal do FCT e membro da Frente de Pesca Artesanal da Incubadora de Tecnologias Sociais (ITS) do OTSS. Na entrevista, Fernandes detalha como o automonitoramento fortalece a gestão comunitária da pesca, fomenta a participação ativa dos pescadores e contribui para o reconhecimento de seus direitos. Leia na íntegra a seguir.


OTSS: Como surgiu a ideia do automonitoramento da pesca artesanal?


Vítor: Em 2007, o IBAMA lançou a Instrução Normativa nº 166, que regulamentava a rede de superfície, rede de emalhe ou rede boieira. Essa normativa não correspondia à realidade da pesca artesanal e passou a inviabilizar o modo de pesca tradicional, impondo muitas proibições. Foi nesse momento que começou o processo de luta pela revisão da portaria.

Após anos de mobilização, a normativa foi revista pela Portaria nº 356/2021, que passou a regrar a pesca artesanal, reconhecendo práticas como as cortiças até em cima.

No entanto, essa portaria exigia que os dados fossem inseridos nos programas de monitoramento pesqueiro, como o PMAP (Projeto de Monitoramento da Atividade Pesqueira) e a FIPERJ [Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro]. A Portaria nº 356 permaneceu vigente até 2022 quando, após muita luta dos pescadores e pescadoras, foi substituída pela Portaria nº 1.455/2022, que reconheceu a possibilidade de realizar o automonitoramento.

A partir daí, surgiu a ideia de ampliar a iniciativa: não apenas para a rede de superfície, mas para todas as modalidades de pesca artesanal. Isso porque os dados são fundamentais na conquista de políticas públicas.

O automonitoramento nasce, portanto, desse reconhecimento oficial. O movimento social — em especial a Frente de Pesca Artesanal — enxergou essa oportunidade e começou a desenvolver o processo, para que não perdesse força. Ter esse reconhecimento em portaria, garantindo que os dados sejam produzidos pelas próprias comunidades, é uma conquista muito importante.

OTSS: De que forma o automonitoramento mudou a rotina dos pescadores?


Vítor: A mudança na rotina dos pescadores e pescadoras foi muito grande. Quem estava em campo, realizando as visitas, percebeu claramente essa transformação.

Passamos a ser mais ouvidos. Procurávamos levar todas as informações que tínhamos, e não apenas recolher os dados. A equipe de campo era composta por pessoas conhecidas e locais. Foi um processo “de nós para nós mesmos”: feito por pescadores, caiçaras e pessoas próximas, responsáveis pela captação dos dados.

Durante as visitas, houve muita conversa e troca de informações. Isso fez com que os pescadores criassem a expectativa de que havia pessoas brigando por eles. Estavam sempre participativos, perguntando, compartilhando e passando os dados.

Além disso, o automonitoramento envolveu a comunidade como um todo. Todos sabiam quem estava participando e havia um diálogo constante. Essa foi a principal mudança de rotina: estar junto, construindo coletivamente, e eles entendendo que vale a pena essa luta. Explicamos, passamos as informações e criamos condições para que todos possam fazer parte e defender a pesca artesanal.


OTSS: Quais desafios vocês enfrentaram para implementar essa prática?


Vítor: Já houve vários programas de monitoramento, como o do Instituto de Pesca no Litoral Norte de São Paulo. O que acontece é que os pescadores passam os dados e, muitas vezes, acabam criminalizados, ou esses dados nunca são considerados corretos. Além disso, não há quem brigue por eles. Ou seja: eles sempre fornecem as informações e sempre enfrentam algum tipo de criminalização.


A mudança veio com o entendimento de que o processo deve ser — e é – conduzido pelo movimento social, pelo Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT). Os dados ficam em uma plataforma compartilhada e também em um caderno criado junto com os próprios pescadores, do jeito que eles acharam melhor.

O primeiro desafio, portanto, foi superar a desconfiança. Pesquisas e monitoramentos sempre chegavam ao território, mas nunca eram repassados para as comunidades, que permaneciam sendo criminalizadas. O automonitoramento mudou isso, trazendo a lógica do “de nós para nós mesmos”: o próprio território protagonizando o processo.


Outro desafio foi o recurso. Como o automonitoramento é feito pelo movimento social, há dificuldades para que os pescadores preencham planilhas, enviem informações ou tenham acesso a celulares e outras ferramentas. Por isso, a equipe de campo precisa estar presente, acompanhando e estruturando uma equipe direcionada. Logo, a falta de recursos financeiros também é um obstáculo.


OTSS: Que tipos de informações ou dados vocês registram?


Vítor: A gente coleta várias informações sobre a pesca: produção pesqueira, pesca incidental, cavalagem do motor, tipo de embarcação, tipo de pesca, área, um monte de coisas que a gente vai caminhando ali para brigar pelas políticas públicas que estão ali para a gente fazer essa regulamentação da pesca como o modo tradicional é, como as comunidades tradicionais fazem.


Temos várias informações que a gente coloca para fazer justamente a política pública de acordo com o que deve ser feito, que a gente vê que as comunidades tradicionais fazem, para a gente brigar por esse tipo de política pública.


OTSS: Como os resultados do automonitoramento influenciam a gestão local da pesca?


Vítor: Os resultados do automonitoramento influenciam muito na gestão pesqueira, porque permitem visualizar os números. Mostram que a gente faz preservação ambiental, que a nossa pesca é sustentável e que não degradamos o meio ambiente. Também revelam que não pegamos as espécies incidentais e que temos o nosso próprio modo de preservação.

Imagem mostra o entrevistado Vítor Fernandes, que fala sobre o automonitoramento da Pesca Artesanal.
Vítor Fernandes, caiçara de Picinguaba (Ubatuba/SP), militante da Frente de Luta da Pesca Artesanal do FCT e membro da Frente de Pesca Artesanal da Incubadora de Tecnologias Sociais (ITS) do OTSS | Créditos: OTSS
Esses dados provam que a criminalização da pesca artesanal é injusta, pois os dados mostram o nosso gerenciamento, a nossa capacidade de produção pesqueira e o compromisso com a sustentabilidade da natureza do meio em que a gente vive.

OTSS: De que maneira o automonitoramento contribui para a preservação ambiental e dos recursos marinhos?


Vítor: O automonitoramento contribui para a preservação ambiental dos recursos marinhos ao mostrar que a nossa pesca é sustentável. Ela não tem capacidade de produção pesqueira gigante como a industrial, que chega e pega tudo. Essa conta não pode recair sobre o pescador artesanal.


E também evidencia que a maioria das pescas das comunidades tradicionais tem sustentabilidade e preservação local. Além disso, contribui com a população em questões de segurança e soberania alimentar.


Assim, o automonitoramento traz uma visualização clara da preservação socioambiental. As comunidades tradicionais já fazem isso há muito tempo, mantendo e protegendo o ecossistema.


OTSS: Como as comunidades percebem o valor dessa prática no fortalecimento da pesca artesanal?


Vítor: As comunidades percebem o valor do automonitoramento quando a gente retorna com as informações. Isso acontece quando pescadoras e pescadores veem os cadernos, quando apresentamos dados no congresso do Fórum de Comunidades Tradicionais ou nas reuniões, e quando mostramos os caminhos que estão sendo trilhados nas políticas públicas.


Também percebem essa força quando levamos informações para dentro das comunidades e quando veem que outras comunidades vizinhas estão fazendo o mesmo. Esse processo gera diálogo entre elas: “nossa, eu estou fazendo o automonitoramento, a equipe esteve aqui, o FCT vem fortalecendo muito essa luta”.


Há ainda os espaços de apresentação, como o congresso, e de diálogo direto, como as reuniões com o Ministério da Pesca Artesanal. Quando os dados começam a aparecer, todos reconhecem que são dados verdadeiros, porque já foram conversados coletivamente.

Esse processo fortalece a prática e integra as comunidades, que percebem cada vez mais o valor do automonitoramento e da prática ancestral que ainda vive nos territórios. Por Caroline Nunes


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