Entre fibras e memórias: arte, ancestralidade e resistência da mulher
- Déborah Gérbera
- há 4 dias
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Angélica Santos dá forma à luta caiçara com mãos que curam, criam e contam histórias.
Em Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo, uma mulher transforma a dor em arte, e a memória em resistência. Angélica Santos, como é conhecida no mundo do artesanato, carrega nas mãos e no coração os saberes ancestrais de uma longa linhagem de caiçaras. Neta, filha e irmã de pescadores e artesãos, encontrou na criação artística um caminho de cura, afirmação e luta pelo território.
Nesta entrevista, Angélica compartilha sua trajetória marcada por perdas profundas, mas também por uma impressionante capacidade de reinvenção. Com materiais da natureza e objetos devolvidos pelo mar, ela constrói obras que resgatam memórias da infância, do bairro do Camaroeiro - Caraguatatuba e da vida tradicional caiçara, e faz disso um grito de resistência feminina e cultural.

Você pode contar um pouco sobre sua história e como começou a trabalhar com o artesanato?
Angélica: Meu nome é Aparecida Angélica dos Santos, mas no artesanato eu assino Angélica Santos. Eu sou neta, bisneta e filha de caiçaras, pescadores artesanais. Sou mãe solo de três mulheres, e tenho seis netos, uma neta falecida, eu trabalhei duro para criar e educar todos.
A minha história tem um pouco de tristeza, sabe? Desde criança eu sempre via meus avós fazendo artesanato. Meu avô trabalhava com cipó, fazia balaios pra carregar peixe, chapéus, um monte de coisa. Tanto do lado do meu pai quanto do lado da minha mãe tinha gente que fazia artesanato, que era pescador artesanal também. Tenho um tio que faz canoas, ele até participa do Festival do Camarão, fazendo canoa de um tronco só. Meu pai também fazia muita coisa, canoinhas, lanchas, tudo feito à mão. Eu ficava com os olhos maravilhados só de ver eles ali trabalhando.
Mas sabe, eles nunca quiseram ensinar, não tinham paciência não, eram pessoas antigas, pescadores… Eles achavam que eu era só uma menina olhando, sabe? Mas eu estava sempre por perto, vendo meu avô descascar cipó, fazendo os balaios pra colocar os peixes, fazia chapéus e outras coisas também. Eu ficava encantada com aquilo. Meu pai morreu fazendo artesanato. Um dia ele estava fazendo um barquinho, e quando ele morreu, eu terminei aquele barquinho que ele tinha começado. Peguei amor naquilo tudo.
Veio a Covid-19 e deixou todo mundo preso dentro de casa. Infelizmente eu perdi minha mãe, que era pescadora aqui no bairro do Camaroeiro, o nome dela era Maria Rosa dos Santos, mas todo mundo chamava ela de tia Nenê. Ela pescava com meu irmão. Depois de seis meses, a Covid-19 levou meu pai também. Foi uma dor tão grande, uma tristeza que eu pensei que ia enlouquecer, perder minha mãe, que estava comigo até então, foi muito difícil.
Depois de um tempo, acho que foi quase um ano, eu já gostava de fazer alguma coisinha, desenhar, pintar, gostava de arte. Eu sempre amei artesanato, sou apaixonada. E aí, um dia, eu estava no quintal, olhando pra um pé de abacate que tinha sido cortado e estava morto, só o tronco ali. Comecei a descascar, pegar as lascas, fui colando e fiz uma tartaruga com aquelas lascas de madeira. Fui fazendo, fazendo, e depois comecei a sair, ir pra praia, pegar um monte de coisa que o mar jogava fora: folha de coqueiro, cordas, redes, madeira... e trazia pra casa. Comecei a fazer peixe, tartaruga, várias coisas, e não parava mais.
Transformei minha dor em arte. Desde então eu não parei mais.
O que significa, para você, ser uma mulher caiçara e artesã hoje?
Angélica: Pra mim, ser artesã caiçara é uma honra enorme. É honrar o nome dos meus pais, dos meus avós, dos meus tios que também trabalham com pesca artesanal. Tem gente por aí que diz que a cultura caiçara acabou, que não existe mais. Eu fico indignada com isso! Eu sou uma caiçara resistente, e meu artesanato é a prova viva disso. Mostrar que ainda existe o caiçara, que a gente resiste, que a nossa cultura tá aqui e vai continuar.

Quais são as técnicas e os materiais que você costuma usar no seu trabalho artesanal?
Angélica: Eu sou autodidata, aprendi sozinha, inventei meu jeito de fazer. Eu uso as partes mais firmes e fibrosas da bananeira, da palmeira imperial, do coqueiro, do cipó, e até os calos do manguezal que o mar joga fora. Tudo que eu vejo que tá limpo, sem cupim, sem bicho, eu trato com muito cuidado, envernizo, cuido de tudo. Minha técnica principal é colagem mesmo, colando pedaços, e às vezes uso parafuso pra firmar as peças. Eu gosto de criar com o que a natureza oferece, o que sobra, o que ninguém quer.
Você considera que o artesanato carrega saberes ancestrais ou espirituais? Como isso aparece no seu fazer?
Angélica: Com certeza! O artesanato é memória viva, é ancestralidade em forma de trabalho. É tudo que meus pais, meus avós ensinaram, mesmo que de forma silenciosa, eu vivi e continuo vivendo isso aqui no Camaroeiro. Cada peça que eu faço traz um pouco daquela história, da cultura caiçara resistente. É como se a alma dos meus antepassados estivesse aqui comigo, me guiando, me inspirando.

De que forma o artesanato impactou sua vida como mulher, em termos de autonomia, autoestima ou visão de mundo?
Angélica: O artesanato impactou minha vida demais. Eu sou mãe e avó solo, não tenho marido, mas a gente se ajuda, né? Tenho três filhas e cinco netos, e trago pra elas a cultura, a força e a resistência da mulher caiçara. A gente é mulher empoderada, de garra! Tenho uma filha enfermeira, outra guarda-vidas, outra empresária em São Paulo. Tudo isso mostra como a força da mulher é grande.
Lembro de uma vez um rapaz que olhou minhas obras e disse: “Quem fez isso aqui? Deve ter sido um homem, né? ” Eu estava do lado, falei: “Fui eu! ” Ele ficou surpreso, disse que aquilo era coisa de maluco, que não existia. E eu pensei: por que só os homens podem fazer arte? Por que não as mulheres? O artesanato me deu voz, me mostrou que a gente pode e deve criar, fazer, resistir.
Como você vê a relação entre o artesanato e a luta por direitos nas comunidades caiçaras?
Angélica: É uma relação difícil, mas essencial. No começo, não tinha onde expor minha arte, nem contar minha história. Fui barrada, humilhada, enfrentei resistência. Mas lutei. Hoje, graças à perseverança, tenho meu espaço ali no Camaroeiro, onde posso mostrar minha arte. Ainda é pouco, mas é uma conquista. O artesanato é uma forma de lutar pelo nosso território, pela nossa cultura, pela nossa existência. Hoje tenho um espacinho onde posso mostrar minha arte e contar minha história, mas ainda é pouco, ainda é difícil ter esse espaço pra gente. O artesanato pra mim é luta, é resistência. É uma forma de dizer: "Eu existo, minha cultura existe, minha comunidade existe."

Qual é o papel do artesanato na sua comunidade? Ele fortalece os vínculos entre as pessoas?
Angélica: Na minha comunidade, o artesanato ainda é pouco valorizado. Tem gente que acha que a nossa história acabou, que a comunidade desapareceu. Mas a gente sabe que não. Eu tento, mesmo sozinha às vezes, levar a história do Camaroeiro pra frente, pra outras pessoas.
Os turistas gostam de ouvir as histórias que contam por trás das peças. Eu conto tudo, cada quadro, cada arte tem um pedaço da minha infância, da vida no Camaroeiro, da pesca, da família. É assim que tento fortalecer os vínculos, mantendo viva a nossa cultura e a memória.
Você costuma ensinar outras mulheres ou jovens a fazer artesanato? Como é essa troca de saberes?
Angélica: Sim, sempre que posso eu ensino. Faço oficinas para mulheres mais velhas, tenho um grupo com gente até setenta anos. Também vou às escolas, tanto públicas quanto particulares, conto a história, levo meus materiais, ensino as técnicas. É uma troca linda.
O artesanato ajuda a gente a ficar melhor, sabe? Quando estou triste ou com problema, vou pro ateliê fazer alguma coisa, e aí vem toda aquela lembrança boa da infância, do mar, dos meus pais, dos meus avós, da praia do Camaroeiro. Uma vez peguei um cavalo-marinho morto e fiz um brinco com ele. Tudo que eu faço tem um pouco dessa história, da vida que vivi junto da minha família. Cada peça tem mar, tem pesca, tem memória.

Quais são seus sonhos ou desejos para o futuro do artesanato na sua comunidade?
Angélica: Meu sonho é ter um rancho de pescadores onde eles possam guardar as redes, sentar, conversar. Um lugar onde eu possa expor meus quadros, contar minhas histórias, me vestir de caiçara, com minha saia de renda, meu vestido de fuxico, lenço na cabeça, fazendo café, cozinhando peixe com farinha.
Quero trazer a comunidade pra perto, manter viva a nossa tradição, pra que as crianças também vivam essa história e aprendam o artesanato. Quando vou às escolas e ensino, vejo as crianças vibrando, se maravilhando. Imagina se eu tivesse um rancho na beira da praia pra levar tudo isso pra elas, pra que entendam que a história não morreu, que a história se vive.
Arte como resistência, memória como força
Angélica Santos é mais que uma artesã, é guardiã de uma cultura que resiste ao tempo e às adversidades. Sua arte carrega sal, madeira, lágrima e fé. Com as mãos, ela reconstrói um mundo que muitos disseram ter desaparecido. Mas sua voz, sua presença e seu ofício dizem: o caiçara resiste, a mulher se ergue, e a arte permanece.