top of page

Barreiras de gênero e conquistas para as comunidades: o papel das mulheres no saneamento ecológico

  • Foto do escritor: Caroline Nunes
    Caroline Nunes
  • 1 de out.
  • 7 min de leitura

“Investir em saneamento ecológico é investir em saúde, dignidade e autonomia feminina nos territórios”, enfatiza a arquiteta Natália Torres

Natália Torres, da Frente de Saneamento Ecológico.
A arquiteta da Frente de Saneamento Ecológico do OTSS, Natália Torres | Créditos: Acervo pessoal

Sanear é resistir. E resistência sempre teve rosto de mulher. Entretanto, o setor de saneamento ecológico ainda carrega um desafio em relação à igualdade de gênero. Segundo um levantamento do Banco Mundial, em 2022 as mulheres representavam menos de 17% da força de trabalho remunerada em água e saneamento no mundo. Mesmo em funções técnicas e gerenciais, a presença feminina não passa de 23%, em média, evidenciando barreiras históricas para que elas ocupem espaços de decisão.


Essa desigualdade se soma aos impactos diretos que a ausência de saneamento adequado gera sobre a saúde feminina. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), parte das mortes maternas e complicações no parto poderiam ser evitadas com acesso à água segura, banheiros adequados e condições de higiene. A gestão da higiene menstrual é outro ponto delicado: estudos da OMS mostram que a falta de infraestrutura apropriada aumenta o risco de infecções genitais e compromete a participação de meninas e mulheres em atividades escolares e produtivas.


No Brasil, experiências de saneamento ecológico em comunidades caiçaras, quilombolas e indígenas têm mostrado caminhos para enfrentar essas desigualdades. Relatórios da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) destacam que tecnologias de baixo impacto ambiental, desenvolvidas em diálogo com as comunidades, não apenas reduzem riscos sanitários, como também fortalecem a autonomia local. Além disso, programas de mapeamento do governo federal vêm reconhecendo e registrando comunidades tradicionais, criando base para políticas públicas que considerem suas especificidades culturais e ambientais.


Logo, o saneamento ecológico se revela mais do que uma solução ambiental: é uma estratégia de justiça social e de equidade de gênero, capaz de proteger a saúde das mulheres e, ao mesmo tempo, garantir a permanência e a dignidade dos povos tradicionais em seus territórios.


Natália Torres, arquiteta da Frente de Saneamento Ecológico do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS) – uma ação conjunta do Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) e da Vice-presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz (VPAAPS) –, acredita que sim: sanear é coisa de mulher! Leia a seguir a entrevista na íntegra. 


OTSS: Pensando nas suas visitas e contato com as comunidades, como é a participação das mulheres dos territórios nas ações de saneamento ecológico?


Natália: Falar sobre saneamento ecológico é abordar um tema bastante amplo, que envolve diversas esferas, como captação, drenagem, esgotamento e manejo de resíduos sólidos. Todas essas áreas estão diretamente ligadas ao cuidado com a água. 


Nas minhas experiências, percebo que são, muitas vezes, as mulheres que trazem à tona discussões sobre saúde e preservação da água, já que, na maioria das vezes, estão na linha de frente do cuidado com as casas e com os filhos. 

A água está presente em todos esses aspectos do cotidiano. No entanto, quando se trata do cuidado técnico e da manutenção dos sistemas de saneamento, ainda vemos uma predominância masculina nesse espaço. 


Trazendo para um outro olhar dos resíduos sólidos, hoje temos em alguns espaços com rede majoritariamente de mulheres que cuidam dos resíduos em cooperativas, pelo fato das mulheres entenderem e terem essa visão da economia solidária em grupo, esse fortalecimento feminino. 


OTSS: Qual a maior contribuição do saneamento ecológico para essas comunidades tradicionais, pensando na saúde da mulher?


Natália: Na minha visão, o cuidado com a água está diretamente ligado ao cuidado com a vida, principalmente quando consideramos a saúde da mulher. O saneamento ecológico exerce um papel essencial na promoção da qualidade de vida e do bem-estar dentro das comunidades tradicionais. 


Quando as mulheres têm acesso à água de qualidade e a espaços adequados, como banheiros limpos e seguros, há uma notável diminuição nos casos de doenças ginecológicas e de enfermidades relacionadas ao consumo de água contaminada, que impactam mais fortemente as mulheres. 

Investir em saneamento ecológico, portanto, é investir em saúde, dignidade e autonomia feminina nos territórios. Além disso, proporciona segurança, já que o acesso a um ambiente privado e seguro para higiene pessoal garante mais tranquilidade e proteção para as mulheres em seu cotidiano.


OTSS: Como é ser mulher em um espaço majoritariamente dominado por homens? 


Natália: Nos últimos anos, tem sido notável o aumento da participação feminina nas discussões e soluções voltadas ao saneamento ecológico, interagindo também com outras áreas como a pesca, agroecologia, alimentação e educação. Digo todas essas frentes porque sem uma água de qualidade não tem escola, não tem comida, não tem dignidade. Então as mulheres estão indiretamente e diretamente ligadas a esses setores. 


As mulheres, em principal, estão envolvidas no consumo e no uso da água, o que demonstra uma forte apropriação desse espaço. Contudo, nos territórios, a maioria dos agentes sanitaristas são homens, especialmente nas áreas de infraestrutura, que permanecem ambientes predominantemente masculinos. 


Como mulher atuando nesses espaços, percebo que, muitas vezes, somos minoria e enfrentamos o desafio constante de nos posicionar e comprovar nossa competência técnica.

Apesar dos avanços alcançados, ainda estamos em processo de evolução e conquista desses lugares. Em congressos e eventos de grande porte, onde o assunto é saneamento, ainda não temos uma participação igualitária, mas está sendo construído cada dia mais esse processo. 


Por outro lado, na gestão de resíduos sólidos, observa-se um número expressivo de mulheres atuando como catadoras e liderando cooperativas, trazendo um olhar cuidadoso e inovador para a pauta, o que tem impulsionado mudanças significativas nesse setor.


OTSS: Você já enfrentou preconceito ou resistência por ser mulher nesse trabalho? Como lidou?


Natália: Sim, atuando como arquiteta e trabalhando diretamente na implantação de sistemas e construções, percebo que esses ambientes ainda são predominantemente masculinos. Nesses espaços, é recorrente a necessidade de a mulher demonstrar constantemente sua competência técnica. 

Natália Torres, da Frente de Saneamento Ecológico.
Natália Torres em campo, junto à equipe de Saneamento Ecológico | Créditos: OTSS

Apesar disso, tenho observado avanços importantes e mudanças positivas, que vêm tornando o ambiente de trabalho mais acolhedor e colaborativo. Ainda existem desafios, como a subestimação da capacidade feminina, mas acredito que, com diálogo e persistência, conseguimos fortalecer nossa presença e ampliar o reconhecimento do nosso trabalho. 


Essa luta é conquistada por todo mundo, lutar para essa igualdade de gênero não depende apenas das mulheres.

OTSS: Na sua visão, qual o papel das mulheres na construção de soluções para o saneamento? O que você acha que muda quando uma mulher participa ativamente desses projetos?


Natália: A presença das mulheres é fundamental. Somos pessoas de força, de garra, e historicamente já temos essa habilidade de planejar e gerenciar diferentes áreas da vida: desde o lar, os filhos, até o trabalho. 


Costumamos ser aquelas que estão sempre atentas aos detalhes, que levam os filhos à escola, ao médico, e que se preocupam com o bem-estar de todos. Por conta desse histórico de cuidado, nosso olhar acaba sendo mais atento e sensível às necessidades coletivas.


Quando as mulheres ocupam espaços no saneamento, isso representa um grande empoderamento e é extremamente importante. Colocá-las em posições de decisão faz toda a diferença, porque, geralmente, onde há mulheres envolvidas, existe mais diálogo, conexão e preocupação com a saúde e com a família. Isso também serve de inspiração para que outras mulheres se sintam motivadas a buscar esses cargos.

O desafio maior é enfrentar as barreiras culturais e sociais que existem. Precisamos entender que muitas vezes a mulher é a base de várias famílias, então ela também deveria ser a base das decisões e da construção de conhecimento nesses espaços. Promover esse protagonismo é essencial para avançarmos cada vez mais.


OTSS: Quais são os principais desafios para garantir que mais mulheres ocupem esses espaços técnicos e de decisão?


Natália: O maior desafio para que mais mulheres estejam em cargos técnicos e de liderança está ligado principalmente às barreiras culturais e sociais que ainda existem. 


Também não dá para esquecer que, por muito tempo, as mulheres tiveram menos acesso à educação e à qualificação profissional, ainda sendo as mais sobrecarregadas em termos de cuidados com o lar e com os filhos, tendo o seu tempo reduzido em muitas realidades. Por isso, é super importante criar espaços onde as mulheres possam falar, serem ouvidas e respeitadas nas suas trajetórias.

Além disso, precisamos divulgar mais as oportunidades para mulheres e garantir que elas tenham acesso justo a esses lugares. Reservar vagas e criar ações afirmativas são caminhos que ajudam bastante. Outro ponto é incentivar e apoiar a participação feminina em conselhos, comitês e outros espaços de decisão, facilitando o acesso à informação sobre essas oportunidades.


As políticas públicas também têm que olhar com mais cuidado para a saúde da mulher, pensando nas demandas específicas delas. Oferecer cursos e programas feitos especialmente para mulheres ajuda muito, porque assim o conhecimento chega a quem realmente precisa. 

Natália Torres e Ticote, da Frente de Saneamento Ecológico.
Natália e Ticote, da equipe de Saneamento Ecológico do OTSS | Créditos: OTSS

Eu mesma participei de vários cursos, em específico o curso pelo OTSS em 2024 e vi muitas mulheres interessadas e engajadas nos assuntos dos seus territórios, mostrando que quando há oportunidade, elas abraçam mesmo!


OTSS: Que conselho você daria para inspirar outras mulheres a ocuparem espaços no saneamento ecológico?


É importante que a gente se jogue mesmo, ocupe esses espaços e acredite no nosso potencial! Não dá para duvidar do que somos capazes. Água tem que ser prioridade, porque sem ela nada funciona: não tem vida, não tem estudo, não tem dignidade. 


O saneamento precisa fazer parte do nosso dia a dia, estar presente em tudo. Sei que ainda tem muita presença masculina nesses ambientes, mas não podemos ter medo de falar, de nos posicionar e mostrar nosso valor.

Precisamos lembrar que defender a água é defender nosso território, nossa vida e a dignidade de todos. É uma luta grande, sim, mas necessária. Saneamento ecológico é uma causa que vale a pena, e a questão da água é um desafio mundial. Então, vamos ocupar, lutar e mostrar que nosso lugar também é nesse movimento!


Por Caroline Nunes


Comentários


bottom of page