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Manguezais de Ubatuba: Vozes que cuidam, resistem e reverberam

  • Foto do escritor: Déborah Gérbera
    Déborah Gérbera
  • há 3 dias
  • 16 min de leitura

Atualizado: há 2 dias

Os manguezais são ecossistemas vitais que sustentam a vida costeira e guardam saberes ancestrais, modos de viver e resistir. Em Ubatuba, litoral norte paulista, esses territórios de água, lama e raízes profundas são berços de biodiversidade e de relações culturais entre comunidades tradicionais e natureza.


Nesta entrevista, o Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS) conversa com Marlene Lopes Giraud, Caiçara do Quilombo da Caçandoca, nascida em 1957, atualmente mora em Caraguatatuba. Autora do livro "A vida de Georgina: conhecendo o manguezal", responsável pelo grupo Terra do Guaiamum e idealizadora do projeto Manguezal Terra do Guaiamum. Faz parte da Rede Litoral Norte de Manguezais Marsul e Instituto Bandeira Verde.


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Marlene, conta um pouco de você e do seu trabalho com os manguezais.

Sou filha de caiçaras. Meu pai nasceu na Praia Grande do Bonete e minha mãe nasceu na praia de Maranduba. Eles se casaram e foram morar na Caçandoca, onde tiveram e criaram seus sete filhos. Eu passei a minha infância toda na Caçandoca, mas um dia tive que sair de lá.

O motivo foi a especulação imobiliária que começou nos anos 60, fazendo um trabalho de assédio com os moradores para que eles vendessem ou trocassem suas terras. Naquele momento, meus pais viram a oportunidade de garantir um futuro melhor para os filhos. Já que o sonho deles era ver os filhos estudados e com isso terem um bom trabalho. Eu estudei até o terceiro ano primário na Caçandoca, mas havia muita dificuldade: falta de professores, falta de estrutura. Para os meus pais, os filhos precisavam ter outro tipo de trabalho, porque lá só tinha a roça e a pesca. Então saímos de lá.

Isso nunca foi um desejo meu, sair da Caçandoca. Me causou muita tristeza. Felizmente sempre  tive a oportunidade de voltar. Nunca deixei a Caçandoca..

Por volta do ano 2000, muitas das famílias que tinham ido embora, conseguiram retornar, já que a Caçandoca foi reconhecida como território quilombola. Eu sempre fui bem envolvida com a comunidade e com esse território, nesse período, surgiu em mim o desejo de criar um projeto para salvar os guaiamuns. Isso porque, com o aumento da população, comecei a ver pessoas sem muito conhecimento da cultura caiçara e sem noção das leis da natureza, que não respeitavam o período da desova e pegavam guaiamum. Isso me marcou muito, e eu pensei: “Não, preciso fazer alguma coisa”.

Essa vontade virou um projeto, com apoio de pessoas de dentro e de fora da comunidade da Caçandoca. Em 2012 começamos. O trabalho era de observação do guaiamum durante o ano todo. Hoje, as pessoas já reconhecem nosso trabalho e nos ajudam a observar o período da andada dos guaiamuns, mas antes quase ninguém falava sobre isso.. Fizemos até um evento, em abril, que coincidiu com o aniversário do projeto e também com a época da andada do guaiamum.

Mais tarde, percebemos que nosso trabalho não era só cuidar dos guaiamuns, mas também do manguezal. Hoje nosso trabalho voluntário se estende para fora da Caçandoca também. Lançamos até um livro, de educação ambiental, que trabalhamos com as crianças nas escolas, principalmente do ensino fundamental.

Hoje moro em Caraguatatuba, mas continuo o trabalho em Ubatuba e também em outras comunidades do litoral norte, onde seguimos com esse projeto de educação ambiental sobre os manguezais e do caranguejo guaiamum.


(Conheça o livro A vida de Georgina: conhecendo o manguezal, de autoria de Marlene Giraud e Carla Beatriz Barbosa.A história acompanha os guaiamuns em sua travessia cheia de obstáculos, como veículos e barulho excessivo, até alcançar o mar, onde liberam suas ovas e garantem a continuidade da espécie.

Mais do que uma narrativa sobre os desafios desses animais, o livro é um convite à preservação dos manguezais e do guaiamum azul, espécie ameaçada de extinção.


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Mangue e manguezal são a mesma coisa?

Então, vamos falar do mangue. Mangue e manguezal têm diferença, mas às vezes eu também chamo o manguezal de mangue. O mangue são as árvores que existem só dentro do manguezal, ou seja, faz parte da flora do manguezal. Já o manguezal é o ecossistema, o bioma: ali tem a flora do manguezal e é onde as pessoas convivem, admiram e utilizam de forma sustentável.

Resumindo: o mangue é a vegetação, as árvores; o manguezal é o lugar, o ecossistema completo que abriga vida. Infelizmente, em alguns lugares a área de mangue foi destruída, e chamam de manguezal, mas a vegetação já não existe mais.


Como você descreveria a importância dos manguezais para a vida ecológica e cultural de Ubatuba?

Ubatuba tem uma natureza linda, maravilhosa, que encanta a gente. Quando a gente atravessa o portal já começa a ver essa natureza exuberante, as praias, cachoeiras, trilhas… e o povo. O povo tradicional deveria valorizar muito mais também a questão do manguezal. O mangue é um bioma riquíssimo.

Quem visita Ubatuba deveria prestar mais atenção ao manguezal, assim como o povo tradicional daqui, e também dentro da questão do turismo. Se a gente começar a olhar o manguezal com outros olhos, vai ver que ele é um espaço muito importante para mostrar ao turista. Além disso, tem a pesquisa, o turismo ecológico, o turismo pedagógico e o turismo de pesquisa. Quanto mais a gente olha para dentro do manguezal, mais percebe o quanto ele é rico, o quanto é possível aprender, e como pode atrair diferentes públicos. Ubatuba devia ter esse olhar. Precisa ter. Porque não é só o que está na frente, à vista. Tem muita coisa bonita dentro de um manguezal.

Se Ubatuba voltar esse olhar para a preservação, para o cuidado e o estudo sobre os manguezais, lá no futuro vai ter muito retorno. Retorno em todos os sentidos. Às vezes eu penso em como não se mostra mais esse conhecimento, como falta um trabalho de educação ambiental dentro do município que mostre a importância desse bioma, desse ecossistema.

Até o próprio caiçara atual, às vezes, não sabe da importância do manguezal. Falta peixe para ele pescar, mas ele não percebe que o manguezal ao redor está sendo destruído. E se a gente pesquisar um pouco, vai ver que sem mangue muitas espécies de peixe não existem. Se o mangue perto dele já não existe mais, ele não vai conseguir pescar determinados peixes. Porque o pescador artesanal fica ali, perto da praia. Ele não vai muito longe no mar. Então precisa dos peixes que saem do mangue, que vivem próximos ao mangue.

Percebo isso, que o próprio caiçara mais jovem, muitas vezes, não carrega essa bagagem de preservar, de proteger o manguezal. E o mangue é vida, né? Tantas espécies do mar, aquáticas e terrestres, nascem ou passam um tempo no manguezal.


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Quais espécies de fauna e flora se destacam nos mangues da região e que papel desempenham no equilíbrio do ecossistema?

A flora dos nossos manguezais aqui do litoral norte são aquelas espécies que nascem dentro do mangue e que não sobrevivem fora, por causa da água salobra e do tipo de solo. O que mais se destaca aqui no litoral norte é o mangue branco. Mas, principalmente na região de Ubatuba, ainda é possível encontrar o mangue preto e até o mangue vermelho, que é mais raro, mas existe. Além disso, tem outras espécies que a gente consegue identificar, como a samambaia-do-mangue, que fica na borda, e também bromélias.

E por que é tão importante ter a árvore-mangue? Porque ela é o berço das espécies que nascem e crescem ali. O manguezal é um berçário. Ele cria, protege e dá vida para muitas espécies. O pé do mangue, a raiz, é um abrigo. Ali as larvas, os bichos, os filhotinhos se encostam para se proteger e se desenvolver. Se não tem mais pé de mangue naquele espaço, vai ter menos vida, menos peixe vindo para se proteger e criar.

Da fauna, é fundamental que esse ambiente esteja inteiro, saudável, para que as espécies cresçam. Tem os robalos, a tainha, o parati e tantas outras espécies de peixe que vêm para ali crescer e se desenvolver, além do camarão. Se o mangue não está protegido, se está degradado, algumas espécies deixam de existir dentro do manguezal e, às vezes, até fora dele.

E tem também os caranguejos, muitas espécies, como o guaiamum, o aratu, o chama-maré. O caranguejo-uçá vive nas tocas, que têm sua importância, acredito eu que ajudam a levar nutrientes, a oxigenar, além de serem moradia desses bichos.

No mangue a gente encontra também a saracura-três-potes, a lontra, que ainda dá para ver no litoral dentro dos manguezais, garças, socós, e tantos outros animais que circulam de um manguezal para outro. Então, é um ambiente muito rico.


Qual a diferença entre mangue branco, mangue preto e mangue vermelho?

O mangue branco é uma árvore de porte médio, muito comum nos manguezais do litoral norte. Ele predomina na vegetação de quase todos os manguezais que visitamos aqui. O mangue preto é um pouco parecido, mas a folha, a raiz e o fruto são diferentes do mangue branco. Ele aparece em menor quantidade em alguns manguezais.

O mangue vermelho é mais diferente ainda: a folha, a raiz, que é mais alta, e o fruto são distintos. É o mais difícil de encontrar. Alguns manguezais têm os três tipos (branco, preto e vermelho); outros têm só branco, ou branco e preto.

A raiz de todos os mangues é fundamental: serve de proteção e berçário para peixes, camarões e outras espécies. Até peixes maiores, como robalos e paratis, encontram abrigo entre as raízes quando necessário.

Para que esses três tipos de mangue sobrevivam, eles precisam de um ambiente específico: o solo do mangue e a água salobra. Fora desse ecossistema, eles não conseguem crescer. Existem outros tipos de mangue, como o mangue de botão, mais comuns em restinga, mas nós estudamos principalmente esses três.


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Que ameaças os manguezais de Ubatuba enfrentam atualmente? E quais os impactos disso para a biodiversidade e as comunidades locais?

Então, os manguezais de Ubatuba já são ameaçados há muito tempo. Para começar, no início dos anos 70, com a abertura da BR-101, a maioria dos nossos manguezais foi dividida ao meio. A parte próxima da praia até não sofreu tanto impacto, mas o lado de cima, sim. E com a rodovia também veio a especulação imobiliária. Para abrir novos bairros, muitos manguezais foram aterrados e rios desviados.

O manguezal precisa de um rio serpenteando, levando nutrientes para dentro do seu espaço. Mas quando cortaram os rios em linhas retas e curtas, eles deixaram de alimentar os manguezais. E fora isso, ainda teve o aterramento para loteamentos, sempre por causa da especulação imobiliária.

E hoje o prejuízo continua. Ainda existe a pressão da especulação imobiliária, aterrando o pouco que resta. São condomínios, casas, construções em áreas de mangue. E também tem a questão das pessoas sem moradia, que acabam ocupando a parte alta do manguezal para construir seus cômodos e viver ali. Isso traz junto o problema da poluição, principalmente de esgoto.

Em Ubatuba não existe ainda 100% de coleta e tratamento de esgoto. Enquanto não tiver, nossos manguezais, rios e mares vão continuar poluídos. Além disso, tem o lixo. Pela falta de educação ambiental, o lixo é jogado em qualquer lugar. Mesmo que seja na serra, a chuva leva para dentro dos rios, que acabam despejando nos manguezais e no mar. Então existe muito lixo nos manguezais.

Enfim, os prejuízos são grandes: lixo, esgoto, aterros. Como não há cuidado, todo mundo leva prejuízo. Tanto a natureza, nossa flora e fauna, quanto os habitantes do território. Uma coisa puxa a outra: se o manguezal está poluído, tem menos peixe; se chove, alaga tudo. No fim, o prejuízo é de todos.


Você poderia comentar sobre a relação entre os manguezais e as comunidades tradicionais, como caiçaras, indígenas e quilombolas?

Então… nós, das comunidades tradicionais, no passado, o manguezal fazia parte da nossa própria existência, da nossa própria vida, né? Porque dentro do manguezal a maioria das pessoas, pelo menos quem morava mais próximo, tirava dali o seu sustento. Tinha várias espécies que as pessoas consumiam.

A comunidade tradicional, quando eu falo daquela comunidade que existia antigamente, tinha muito… acho que a palavra é intuição, ou conhecimento ancestral mesmo. Tudo tinha um tempo. Um tempo para colher, um tempo para esperar, um tempo para usufruir. E com isso, não faltava. Não faltava um peixe, não faltava uma caça, não faltava um remédio, porque estava tudo ali. Mas tinha um tempo. Ninguém pegava o tempo todo.

A comunidade tradicional tinha essa consciência. E hoje, ainda, os mais velhos sabem a hora que podem usufruir daquele espaço. Isso é o respeito pela natureza. E o mangueza tem essa função também: ele leva alimento para fora, ele cria vida, é berço da natureza. Ali, algumas espécies vivem, crescem e depois vão para o mar. (Acho que fugi um pouquinho do assunto… risos.)

Os caiçaras, como eu, que sou uma caiçara nascida no quilombo, já são essa mistura: do povo que veio da África e trouxe suas culturas e tradições, dos indígenas que aqui estavam e também do europeu que veio depois. Existe uma mistura em tudo isso. Eu, como filha de caiçara, carrego esse aprendizado misturado em tudo: na alimentação, na diversão, no trabalho.

Eu tenho um pouco da herança do povo indígena, um pouco do povo quilombola, um pouco do europeu… uma mistura que, às vezes, numa coisa é mais forte, noutra é menos, mas está presente em tudo, na alimentação, na plantação, nas roças.

Quando falo do povo quilombola, falo também desse povo que veio, que se misturou com o indígena, com o europeu… e dessa mistura toda. Mesmo quem não morava tão próximo do mangue e não tinha o hábito de viver diretamente dele, usufruía do benefício. Indiretamente, era beneficiado, porque todo mundo que morava aqui, todo caiçara, vivia da caça e da pesca. Então, quando ia comer um peixe, estava sendo beneficiado também pelo manguezal.

Essa mistura de povos… todos se beneficiavam. O manguezal era, e continua sendo, fonte de vida para todos nós.


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Quais práticas tradicionais de cuidado com o mangue você considera valiosas e ainda presentes hoje em Ubatuba?

O respeito era o que os mais velhos nos ensinavam, porque assim eles aprenderam com os pais, com os antepassados deles. O uso fluía do que tinha dentro do manguezal: a pesca, a caça, retirar alguns materiais para fazer corda, tingir corda ou produzir alguns objetos. Mas era só o necessário, nada de desperdiçar. Pegava o que era preciso: um peixe, um pouco de camarão, uma madeira para fazer uma colher, um objeto para casa.

Teve uma prática que, sem perceber, acabou prejudicando o manguezal: cortar galhos do mangue branco para fazer cerca, ou retirar a casca do mangue para tingir redes de pesca, para que não estragassem com o tempo. Esse costume fez desaparecer árvores em lugares como a Caçandoca, onde o pouco que havia acabou.

Hoje, o caiçara ainda mantém esse respeito. Mesmo quem não estudou na escola sabe que, se tirar além do necessário, o mangue acaba. Então, o que ainda se pratica é usufruir só do que precisa, sem a ganância de querer pegar tudo.

Claro que algumas práticas já não deveriam mais existir, porque há animais em extinção e os manguezais estão muito destruídos. Mas, quando falamos em consumo, ainda existe essa consciência de respeito. O caiçara continua, por exemplo, consumindo o guaiamum, mas só para seu próprio sustento.

Acredito, no entanto, que a mentalidade precisa mudar, para que não se perca o pouco que resta. Em vez de explorar, podemos usar de outra forma: levar turistas para conhecer o rio que corta o mangue, mostrar as belezas do manguezal, encantar as pessoas com esse espaço. Isso poderia trazer retorno, valorizando o lugar e ajudando as famílias que precisam sobreviver dele.


Na sua visão, o que falta em políticas públicas, educação ambiental ou participação popular para fortalecer a proteção dos mangues?

O que falta nas políticas públicas é cumprir as leis que já existem. Se quem tem o poder realmente colocasse em prática essas leis, os manguezais não estariam do jeito que estão. Mas o próprio poder público também destrói, porque autoriza aterrar mangue, construir na beira ou até dentro dele, não faz saneamento básico e permite que o esgoto e o lixo cheguem nesses espaços.

Os vereadores poderiam estar muito mais atentos e preocupados com essa situação, mas a maioria não está nem aí. Para eles, o mangue não é valorizado. Talvez exista um ou outro que lute a favor, mas sem força suficiente. A indiferença é o pior.

Já a participação popular em Ubatuba é considerável. De uns dez anos para cá surgiram vários grupos que mostram a importância do manguezal e denunciam sua degradação. O problema é que, mesmo com denúncias, muitas vezes a prefeitura autoriza a construção e o aterro. Então, a luta popular existe, mas não cria força suficiente para barrar as destruições. Ainda assim, vejo que as pessoas não desistem. Não conseguem avançar muito, mas também não desistem.

Agora, eu acredito que a verdadeira solução está na educação. Tem que começar nas escolas e também nas comunidades. O adulto já tem a cabeça formada e, para muitos, isso não importa mais. Mas nas crianças dá para plantar essa semente, ou melhor, plantar no coração delas. É só pela educação que, no futuro, a gente pode voltar a ter manguezais prósperos, cheios de vida em abundância.

Eu sempre digo que educação é o caminho. Só que vai levar tempo. Já houve muita destruição e descaso. Até que essa virada de chave aconteça, e as novas gerações passem a cuidar em vez de maltratar, ainda vai demorar.


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Há projetos ou iniciativas locais que você destacaria como exemplo de cuidado e recuperação dos manguezais na região?

Tem sim, várias iniciativas. De caiçaras, de simpatizantes, de pessoas que entendem e amam os nossos manguezais. Não só os manguezais, mas os biomas e ecossistemas em geral, porque sabem que cuidar disso tudo faz bem para o planeta. A gente vive um momento muito crítico, de aquecimento global, mudanças climáticas… estamos perdendo tanta coisa que poderíamos ter cuidado melhor.

Então tem bastante gente querendo fazer alguma coisa. Em Ubatuba, tem o pessoal do Tamoio. É um trabalho cansativo, porque financeiramente não tem quase nenhum retorno, cada um trabalha com a sua própria condição. Tem também o Manguezal Terra do Guaiamum, que já tem 12 anos. É um grupo pequeno, de pessoas voluntárias, que lutam muito, mostram, fazem acontecer. Muitas vezes a gente até pensa: como conseguiram sem apoio nenhum? Tudo sai do bolso e do esforço de cada um.

Existem outros projetos que têm apoio da Petrobrás, como o Instituto Argonauta, que também colabora muito, e o pessoal do Projeto Mero do Brasil. Eu mesma sou testemunha: quando precisamos de ajuda, convidamos e eles estão presentes. Tem também o Nativo Caiçara, com o Didi, uma pessoa maravilhosa que luta pelo manguezal, mostrando o quanto é importante e o quanto está sendo destruído.

Até algumas escolas da região sul de Ubatuba já desenvolvem, há bastante tempo, projetos voltados para o manguezal, todo ano trabalhando o tema com os alunos.

Então, gente trabalhando existe bastante. O problema é que também tem uma corrente contrária, e essa corrente está com o poder na mão. Quer ocupar os espaços do mangue. Se a prefeitura hasteasse a bandeira da defesa dos manguezais, seria muito interessante.

O que acontece é que muitas pessoas nem entendem a importância disso, não têm conhecimento. Outras até sabem, mas não têm consciência. Tem gente que mora do lado do manguezal e mesmo assim destrói. A consciência é algo que precisa nascer dentro de cada um. Não adianta eu tentar impor. A pessoa tem que entender por si que não pode destruir. E, muitas vezes, não precisa nem “fazer” algo: basta não jogar lixo, não jogar esgoto, não construir onde não deve.


Como a juventude, as escolas e a educação ambiental podem ajudar a manter vivos os manguezais e os saberes que eles guardam?

Então, nas escolas tem que ser um trabalho de parceria: diretor/a, coordenador/a, professor/a e a comunidade tradicional que tem esse conhecimento, que traz essa vivência. É assim que se desperta o interesse no aluno.

O espaço da escola precisa estar aberto para que a gente possa chegar, mostrar e, primeiro de tudo, despertar. Porque criança e jovem, você tem que conquistar, despertar o interesse. A partir daí, pode deixar que eles mesmos sigam em frente.

As pessoas mais velhas, que viveram e cresceram do lado do manguezal, na beira da praia, que tiveram práticas de sobrevivência usando os recursos do manguezal, do mar, do rio… essas pessoas têm muito a compartilhar. Se tivesse um programa para convidar essas pessoas a estarem dentro da escola, seria maravilhoso.

Eu, por exemplo, nem espero convite. Eu mesma vou e me coloco à disposição. Tenho certeza que o Didi, a Lídia, o Tamoio, a Rosana, a Daniela e tantas outras pessoas fariam o mesmo. A gente vai lá e oferece o que tem para contribuir.

Eu tenho muita gratidão pelas escolas da região sul de Ubatuba. Da Praia do Urubu até o Guararibá, já visitei várias ao longo dos anos. Sempre fui muito bem recebida. Consegui falar daquilo que acho necessário, participar de projetos. Muitas vezes, no final do ano, tem exposições, e a gente vê que as crianças entenderam, participaram de verdade.

Mas o que falta é isso: que venha também da Secretaria de Educação. Que não seja só a gente batendo às portas das escolas para oferecer um trabalho, mas que venha de dentro para fora: “vem, Marlene, vem seu Didi, vem participar do projeto da escola”.

Desde 2016 eu faço isso, me convidando. E tem dado bons resultados, mas poderia ser maior se houvesse esse apoio institucional. O que precisa são portas abertas, tanto para os mais velhos, quanto para os mais novos que já têm essa paixão pela natureza, que são os cuidadores dos manguezais.


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O que a ciência e a sua experiência profissional tem revelado de mais surpreendente ou encantador sobre os mangues de Ubatuba?

Bom, o que mais encanta é perceber que, apesar de pequenos e tão pressionados pelo avanço dos loteamentos e condomínios, os manguezais de Ubatuba ainda guardam muita vida. Aqui temos o maior manguezal do litoral norte, o do Rio Escuro, na Praia Dura. Ali é impressionante: entro, conheço, observo, e sempre me surpreendo.

O mangue é cheio de moradores, caranguejos, peixes, aves, até lontras em alguns lugares. Às vezes, só de parar no manguezal da Maranduba, a gente já vê garça, garça-moura… isso é muito lindo. E além disso, dentro de um mesmo manguezal podemos encontrar três tipos: o mangue branco, o preto e o vermelho, embora o branco seja o mais comum por aqui.

Mesmo com poluição e tantas dificuldades, ainda resistem, ainda se multiplicam. Tem manguezal que abriga todos os tipos de caranguejo, outros onde os peixes ainda conseguem entrar. Para mim, isso é o mais encantador: a vida insiste.

O manguezal é berço da vida marinha e terrestre. Nas raízes dos mangues brotam peixes, camarões, aves que se reproduzem ali… tudo nasce naquele emaranhado de raízes. É um verdadeiro ventre da natureza.

Agora, em termos de ciência, não vejo muita pesquisa sendo feita nos manguezais de Ubatuba. Desde 2018 tento, junto com o Módulo de Caraguatatuba, articular algum trabalho de estudo mais aprofundado. Mas faltam alunos interessados, falta incentivo. Então o que temos hoje é mais a observação curiosa, a experiência de quem entra no mangue e vê a vida acontecer.


Se o mangue pudesse falar, o que você acha que ele nos diria hoje?

Se os manguezais falassem, se os bichos e as árvores do mangue falassem, eles estariam gritando por socorro. Um grito para salvar o mangue, que em muitos lugares quase não existe mais. Eles pediriam cuidado, pediriam recuperação.

O manguezal da Caçandoca, por exemplo, está por um fio. Posso até dizer que quase não existe mais. Mas ainda respira: lá vivem muitos caranguejos guaiamuns, a saracura-três-potes, a lontra que visita, algumas cobras… sinais de que o espírito do mangue ainda resiste ali.

Esse pedido de socorro não é só de Ubatuba, é de todo o Litoral Norte. Eu visito manguezais em São Sebastião, Caraguatatuba, Ubatuba… e quase todos estão sofrendo muita pressão. Alguns até recebem cuidados das crianças e da comunidade, mas outros são destruídos pela própria comunidade, que precisa construir casas, erguer quiosques, descartar esgoto e lixo. Mas nada disso justifica. Falta educação. Falta aprender a respeitar o manguezal. E talvez a reeducação venha da escola, da criança que ensina o adulto a cuidar.

Hoje, meu trabalho é de divulgação, de falar sem parar sobre a importância do manguezal e do caranguejo guaiamum, que está ameaçado de extinção. É um trabalho voluntário, feito com insistência e paixão. Repito sempre a mesma tecla, até parecer chata, mas não vou parar de falar.

Porque o mangue é mãe. Ele me deu vida. Quando nasci, a sobrevivência da minha família vinha do mar, do mato, dos quintais e também do mangue, que estava ali, ao lado da minha casa. Muitas vezes tiramos dele o alimento que nos sustentou. Eu sou grata ao mangue. E por isso, vou continuar defendendo essa mãe, até o fim do meu ciclo de vida.


Marlene, muito obrigada pela partilha tão generosa dos seus conhecimentos, da sua paixão pelo mangue e da sua trajetória de luta e cuidado.


Fotos e entrevista por Déborah Gérbera


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