Cozinha das Tradições: em cada prato, um pedaço da história e resistência das comunidades tradicionais
- Caroline Nunes

- há 1 hora
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“Cozinhar juntas não é só fazer comida: é fazer política, defender o território e fortalecer nossas raízes; a cozinha nos devolveu o que estava se perdendo: nossos instrumentos, nossas receitas, nossas memórias”, destaca Ninha, coordenadora do coletivo Cozinha das Tradições

A Cozinha das Tradições nasceu como espaço de afeto, resistência e memória, mas rapidamente se consolidou como uma das experiências mais potentes de Economia Solidária no território caiçara, quilombola e indígena da Bocaina. Formado majoritariamente por mulheres e alguns homens, o coletivo articula geração de renda, soberania alimentar, valorização cultural e defesa do território — tudo isso a partir da cozinha e dos saberes ancestrais.
O que começou com encontros esporádicos e ações de mobilização se transformou em um movimento estruturado, capaz de organizar grandes eventos, promover formações, criar empreendimentos comunitários e fortalecer a autonomia do coletivo. Hoje, a Cozinha das Tradições reúne mais de 75 cozinheiras e cozinheiros de 14 comunidades e confirma aquilo que os próprios participantes sempre souberam: quando a comida é produzida coletivamente, com vínculo comunitário e respeito aos territórios, ela gera muito mais do que alimentação — ela gera vida.
Nesta entrevista, Cirlene Martins — a Ninha — coordenadora da Cozinha das Tradições e integrante da Frente de Agroecologia do Fórum de Comunidades Tradicionais e do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS) — por meio da Incubadora de Tecnologias Sociais (ITS) —, conta como o coletivo surgiu, se estruturou e ganhou o coração do território. Entre memórias, desafios e sonhos, ela revela como a cozinha se tornou um espaço político, cultural e econômico, guiado pelos princípios da solidariedade e do cuidado. Leia a seguir.
OTSS: Ninha, para quem nunca ouviu falar, como você explica o que é a Cozinha das Tradições? De que forma essa ideia surgiu?
Ninha: A Cozinha das Tradições nasceu em 2023, como um braço de militância do Fórum de Comunidades Tradicionais, quando fomos convidadas para participar do CBA [Congresso Brasileiro de Agroecologia], no Rio de Janeiro. A equipe do Congresso queria muito uma cozinha que representasse as tradições dos territórios. A Dani veio até Paraty, sentou com a gente, explicou direitinho e fizemos um encontro lá em São Gonçalo, reunindo cerca de 40 mulheres para cozinhar juntas pratos tradicionais e ancestrais.
Passamos o dia inteiro revivendo receitas que estavam se perdendo. Um mês depois, fomos todas para o CBA — três dias intensos, cozinhando, trocando saberes com mulheres de outras comunidades. Saímos de lá revigoradas e decidimos: “Vamos montar nosso grupo!”. Foi assim que nasceu o Coletivo Cozinha das Tradições, que agora acabou de completar dois anos e está crescendo cada vez mais.
Mas antes mesmo disso, já tinha uma semente: fizemos um Banquetaço lindo no Quilombo do Camburi, com café da roça e comida tradicional. Quando a Cozinha das Tradições se formou, muita coisa já estava pulsando no território.
OTSS: O coletivo reúne mulheres e homens de 14 comunidades quilombolas, caiçaras, e também indígenas. Como essa união tão diversa se fortaleceu ao longo do caminho?
Ninha: Essa união cresce nos encontros. Cada vez que a gente se encontra — em eventos, formações ou mutirões — a gente se fortalece. Hoje somos mais de 70 mulheres e alguns homens de comunidades quilombolas, caiçaras e, agora, indígenas também.
A Cozinha das Tradições virou quase uma família. Muitos dos integrantes que estavam isolados ou passando por momentos difíceis encontraram na Cozinha um espaço de cura, companhia e pertencimento. Tivemos depoimentos de pessoas que superaram a depressão, que voltaram a plantar, que retomaram a alegria de participar das coisas.
Elas mesmas falam: “A gente quer encontro todo mês”. Não é só comida — é afeto, é apoio, é troca. A Cozinha uniu muita gente que nem se conhecia e hoje caminha como uma grande família.
OTSS: Você pode contar como a cozinha se transformou em movimento social? O que significa cozinhar de forma coletiva, política e comunitária?
Ninha: A Cozinha deixou de ser só cozinha. Virou movimento. Quando a gente se junta para cozinhar, a gente também fala do território, defende os nossos direitos, luta pela preservação das casas de farinha, pelo roçado, pela pesca tradicional.
Hoje muitas comunidades não têm mais casa de farinha porque no passado teve até gente que comprou os instrumentos — pilão, prensa, tipiti — e revendeu para fora. A Cozinha das Tradições reacende essa memória e dá força para reivindicar tudo isso de volta.
As mulheres e homens voltaram a plantar, a fazer horta, a querer produzir no próprio território. A Cozinha virou um lugar político, de união e resistência. É sobre cuidar da terra, do alimento e da comunidade.
OTSS: Quais foram os momentos que marcaram a trajetória da Cozinha das Tradições?
Ninha: Dois momentos foram fundamentais: o encontro em São Gonçalo + o CBA, lá em 2023, onde tudo começou; e o EITS [Encontro Internacional de Territórios e Saberes], que foi o maior desafio e também a maior conquista.
No EITS a gente juntou mais de 75 pessoas, trabalhando em duas cozinhas montadas, servindo mais de 12 mil refeições em cinco dias. Nunca imaginamos alimentar tanta gente. Foram meses de reuniões, decisões de cardápio, organização — oito meses de trabalho intenso.

Foi marcante ver o resultado: todo mundo feliz, o território reconhecendo nosso trabalho e a Cozinha se consolidando como referência.
Além disso, tivemos intercâmbios na Bahia, em Sergipe, e participamos de vários eventos — tudo ajudou a fortalecer o coletivo.
OTSS: Como foi coordenar um trabalho do tamanho do EITS?
Ninha: Foi imenso. Dois dias só para discutir cardápio. Depois, meses de reuniões — às vezes mais de uma por dia. No encontro, eram mais de 80 pessoas envolvidas, contando quem ajudava por fora.
Cansativo? Muito. Mas também foi lindo. Ver o compromisso de cada um, a força da equipe, a alegria de entregar tudo no prazo... aquilo emocionou. A gente nunca tinha cozinhado para tanta gente. Quando terminou, parecia um sonho realizado.
OTSS: De que maneira as formações mudaram a vida e o trabalho das mulheres nos territórios?
Ninha: Muita coisa mudou. Com mais de 70 pessoas no coletivo, hoje cerca de 35 têm seus próprios empreendimentos. Muitas já vendiam comida, mas não tinham segurança, técnica ou a valorização dos pratos tradicionais.
Com as formações — cardápio, gestão, segurança no trabalho, combate a incêndio, agroecologia — elas ficaram mais confiantes. Voltaram a plantar, organizar roças, pedir a reativação das casas de farinha.
O pessoal não quer mais sair do território para trabalhar em limpeza ou cozinha dos outros. Eles querem trabalhar na própria comunidade, com a própria cultura. E isso alimenta não só o corpo, mas a alma.
OTSS: Quais são os principais desafios hoje para fortalecer o coletivo?
Ninha: Hoje o desafio é organizar bem o coletivo para continuar crescendo. Tem muita gente querendo entrar, e isso é bom, mas também precisa de cuidado.
Por isso estamos montando um Comitê de Gestão e criando uma Carta de Princípios, para garantir que quem entra venha pelo amor à cozinha e ao território — e não só pelo interesse nos eventos.
Outro desafio é envolver mais comunidades indígenas. Agora entrou a primeira mulher indígena, depois de dois anos de aproximação. Elas têm seu tempo, seu jeito, e a gente quer respeitar isso. E claro: recuperar casas de farinha, fortalecer roçados e organizar melhor a gestão interna são desafios grandes.
OTSS: O planejamento de 2026 inclui ações como o Livro de Receitas e hortas comunitárias. O que você mais sonha ver acontecer?
Ninha: Nosso maior sonho é o Livro da Cozinha das Tradições, que já tem mais de 70 receitas e muitas memórias afetivas de várias mulheres e homens. Cada receita tem uma história. Todo mundo pede esse livro, e ele vai sair.
Também sonhamos com o grande encontro de planejamento, que já está marcado, onde vamos comemorar os dois anos da Cozinha. Serão três dias juntas, pensando no futuro e celebrando nossas conquistas.
E espero que 2026 traga muita coisa boa: mais formação, mais união, mais força para o coletivo.
OTSS: Por que é tão importante recuperar instrumentos e práticas tradicionais como pilão, tipiti, casas de farinha e ervários?
Ninha: Porque eles fazem parte da nossa história. No passado, muita comunidade só conseguiu se manter graças à farinha — homem e mulher faziam farinha para vender e juntar dinheiro para pagar advogados e garantir o título da terra.
Hoje muitas comunidades perderam casas de farinha, perderam canoas tradicionais, perderam ferramentas porque pessoas de fora compraram tudo para enfeitar condomínio.
Com a Cozinha das Tradições, estamos conseguindo resgatar essa memória. As mulheres estão pedindo novamente casas de farinha, voltando a plantar, voltando a pescar com mais identidade. Recuperar esses instrumentos é recuperar quem a gente é.
OTSS: Se você pudesse deixar uma mensagem para quem ainda vê a cozinha apenas como “lugar de fazer comida”, qual seria?
Ninha: A Cozinha é lugar de luta, de sobrevivência, de união. É onde as mulheres se encontram para festejar, defender o território e cuidar das crianças. É onde se transmite saber de geração para geração.
Aprendi a cozinhar com minha mãe, que já se foi. Hoje ensino meus filhos e sei que eles vão passar adiante. A cozinha é amor, amizade, família. É a essência da vida no território. Nunca podemos deixar essa essência morrer.
Por Caroline Nunes



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