Integrantes da Rede Marangatu reunidos na comunidade caiçara de São Gonçalo, em Paraty (RJ): união em torno de processos de coleta de dados que contribuam para a permanência das comunidades tradicionais em seus territórios.
Embora estejam entre os principais guardiões da sociobiodiversidade brasileira, povos e comunidades tradicionais estão também entre as principais vítimas do racismo ambiental e da criminalização de seus modos de vida. Como, então, fortalecer suas práticas tradicionais e criar caminhos para demonstrar, com base em evidências científicas, que esses povos devem ser reconhecidos pelo papel que desempenham para a proteção da fauna, da flora e da cultura no Brasil?
Esta foi a tônica do segundo Intercâmbio e Oficina da Frente Sudeste da Rede Marangatu, iniciativa voltada para a governança territorial e a promoção de políticas de conservação e valorização da sociobiodiversidade costeira marinha. Financiada com recursos do CNPq, a Rede tem, entre seus principais objetivos, criar e adequar protocolos de coleta de dados da sociobiodiversidade que façam sentido para os povos tradicionais, contribuindo na defesa e permanência destas comunidades em seus territórios.
“A Rede Marangatu é uma iniciativa que coloca as pessoas no centro dos estudos sobre sociobiodiversidade, defendendo os territórios tradicionais e promovendo a conservação da biodiversidade. Através da pesquisa científica e da Ciência Cidadã Participativa, a Rede fortalecerá a relação entre povos tradicionais e a proteção da natureza e cultura, valorizando seu conhecimento e contribuição. Em meio ao racismo sofrido pelas comunidades e em tempos de mudanças climáticas, essa abordagem se torna ainda mais importante para promover a justiça socioambiental territorializando a Agenda 2030", explica Júlia Borges, coordenadora executiva da Rede.
Frente Sudeste
A Frente Sudeste da Rede Marangatu é formada pelo Projeto Coimbra, executado pelo Centre for Functional Ecology - Science for People & the Planet (CFE); Laboratório Associado TERRA; e Universidade de Coimbra, em Portugal. Também integram a Frente Sudeste a Gestão da Rede Marangatu e o Projeto Sudeste, executado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pelo Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT), pelo Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e pela Universidade de Aveiro (AV), em Portugal.
Entre os dias 13 e 15 de junho, representantes destas organizações estiveram reunidos em Paraty (RJ) para avançar na definição da proposta de área de abrangência do projeto, ainda a ser dialogada e validada com as comunidades, assim como na discussão sobre os protocolos de coleta de dados que serão construídos. Entre outros critérios, os participantes entenderam ser importante incluir, na região da Bocaina, comunidades caiçaras, indígenas e quilombolas integradas ao FCT que já tenham o uso de seu maretório e de seu território continental caracterizados pelo Projeto Povos, iniciativa que também está mapeando os conflitos envolvendo estas comunidades com grandes empreendimentos e unidades de conservação.
“Nossos povos são constantemente criminalizados pelos órgãos ambientais, sobretudo os que foram sobrepostos por unidades de conservação sem que jamais tenham sido consultados, como determina a Convenção 169 da OIT. A Rede Marangatu vai contribuir para a gente provar que somos, na verdade, os principais aliados da conservação”, destacou Vagner do Nascimento, coordenador geral do OTSS e integrante do Colegiado de Coordenação do FCT.
Segundo ele, conflitos territoriais resultantes da ocupação e uso de territórios tradicionais em situação de sobreposição com Unidades de Conservação seguem afetando a reprodução de modos de vida tradicionais dessas comunidades no litoral sul do Rio de Janeiro e no litoral norte de São Paulo. As violações de seus direitos concretizam-se pela criminalização de suas práticas, despejos forçados de seus territórios ancestrais, restrição do direito de ir e vir e limitação do acesso a bens naturais essenciais à sobrevivência e manutenção do modo de vida das comunidades tradicionais.
Além disso, procedimentos administrativos de multa, embargo e demolição são executados pelos órgãos ambientais estaduais e federais (gestores das Unidades de Conservação), assim como ações penais movidas pelo Ministério Público na tutela do meio ambiente contra comunitários tradicionais e suas famílias. Contexto agravado pela subnotificação e por impactos gerados por grandes empreendimentos nas áreas de energia e petróleo e por empreendimentos turísticos e imobiliários de alto padrão que movem ações de esbulho, turbação e reintegração de posse (‘grilagem’) contra comunitários.
“No Ubatumirim, por exemplo, são pais, mães, filhos e primos multados pelos órgãos ambientais, mesmo quando têm autorização. Ao mesmo tempo, os resorts e casas de luxo construídos em áreas de mangue não têm multa nenhuma. Isso precisa mudar e esperamos que a Rede Marangatu nos ajude a demonstrar essas injustiças”, completou Chico da Almada, pesquisador do OTSS que também integra a Frente de Pesca Artesanal do FCT.
Desdobramentos
Para impulsionar a elaboração de políticas públicas, as informações levantadas pela Rede Marangatu serão integradas ao Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (SiBBr), infraestrutura nacional de informações da biodiversidade responsável pela organização, indexação, armazenamento e disponibilização de dados e informações sobre a biodiversidade e os ecossistemas brasileiros.
Desenvolvido sob coordenação do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação (MCTI), com suporte técnico da ONU Meio Ambiente (UNEP) e apoio financeiro do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF), o SiBBr atua como o nó brasileiro do GBIF (Global Biodiversity Information Facility), iniciativa multilateral com aproximadamente 60 países participantes. Os dados disponibilizados na plataforma são originados de instituições nacionais de ensino e pesquisa, públicas ou privadas, projetos e programas de pesquisas e redes temáticas.
Outra contribuição da Rede será gerar insumos para a elaboração de planos de manejo de APAs marinhas e dos chamados PEMs, ou Planejamentos Espaciais Marinhos. O PEM é um dos programas da Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI), criada em 1960, e que é secretariada pela Unesco. Trata-se de um processo sistemático de planejamento pelo qual a distribuição espacial e temporal de atividades humanas em áreas marinhas são analisadas. A partir destas análises, são propostas alternativas de alocações e incentivada sua implantação na forma de políticas públicas e de gestão. O objetivo final é o de promover a sustentabilidade ecológica, econômica e social das atividades humanas no ambiente marinho, reduzindo conflitos e favorecendo a adaptação às mudanças climáticas.
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