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Pesquisadora da Fiocruz fala sobre importância do SUS em tempo de desastres ambientais

Caiçara, enfermeira sanitarista, poeta e pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Desastres e Emergências em Saúde da ENSP/Fiocruz, Maria Mitsuko percorreu todos os estados atingidos pelo petróleo derramado no Nordeste. Leia a entrevista completa

Motivada por ter nascido em Ubatuba, perto do mar e da praia, a enfermeira sanitarista que trabalha na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) percorreu todos os estados atingidos pelo petróleo para registrar a atuação do setor saúde no contexto deste desastre ambiental. Conclusão? Em meio ao racismo e abandono de diversos setores da sociedade na resposta à tragédia, foi o Sistema Único de Saúde (SUS), ainda que com pouca estrutura, quem mais arregaçou as mangas para ouvir e atender a população atingida.


“A Fiocruz é uma instituição do SUS e estamos aqui para apoiar a população. Precisamos lutar muito para que o SUS continue público, gratuito e que seja universal. Que esse racismo institucional seja derrubado pela nossa luta. Que a gente consiga se organizar cada vez mais, se preparar para qualquer questão de desastre ou não e que tenhamos esses direitos garantidos”, fala Maria Matsuko em entrevista ao OTSS.


Como você se apresenta e pode nos contar sua história na atuação com saúde pública?

A minha atuação na saúde pública começou em 2009 quando entrei na universidade e comecei a militar na Executiva Nacional de Enfermagem. Ao longo dos anos, eu fiz estágio em muitas unidades de saúde diferentes. Minha formação foi na Escola de Enfermagem Anna Nery na UFRJ e, assim que me formei, passei para um concurso e trabalhei por dois anos na estratégia de saúde da família. Depois disso fiz especialização em saúde pública na ENSP e entrei em contato com a questão dos desastres. Fiz a relatoria do seminário de Brumadinho e me interessei muito pela temática.

Quando aconteceu o derramamento de petróleo no Nordeste, eu, como caiçara, fiquei muito tocada e queria ajudar de alguma forma. Então conversei com o Carlos Machado, que havia orientado toda a questão de Brumadinho, e ele falou que havia uma demanda de avaliação do setor de saúde frente ao derramamento de petróleo cru. A ideia era entender qual era a atuação das secretarias estaduais e municipais perante esse derramamento. Quais foram as ações tomadas, foram emitidas notas técnicas, sensibilização das equipes, o que foi feito? Como se tratava de um desastre que não tinha acontecido antes no Brasil e não tínhamos um protocolo para derramamento de petróleo na saúde, a gente tinha que entender o que foi feito e fiquei com essa tarefa.

Quando houve o derramamento, além da minha vontade de apoiar, tínhamos a questão do COI que se estabeleceu na Fiocruz, onde tínhamos que pensar como a Fiocruz poderia contribuir como instituição frente a esse desastre. Uma das demandas era essa. Eu aceitei esse trabalho e fiz o roteiro da viagem, passando uma média de três dias em cada estado afetado, entrevistando as secretarias estaduais, algumas municipais e algumas comunidades afetadas pelo derramamento.


Como se deu essa missão de percorrer os lugares atingidos?


Fiquei muito tomada como caiçara, meu avô é pescador. Queria apoiar de alguma forma. Fiz o roteiro, criamos um questionário pensando nas questões que eram importantes para entender a atuação do setor saúde e como as comunidades viam essa atuação. Chegando lá, cada estado mudava de acordo com a quantidade de óleo que chegou na praia e a atuação foi diferente de um para o outro. Foi possível perceber que é muito importante existir um financiamento para desastres para que haja estrutura de laboratórios para quando acontecerem desastres desse tipo. Eu vi uma atuação diferente em cada estado. Todas se comunicaram nesse processo numa tentativa de se apoiar frente a um evento inesperado.

Me deparei com comunidades de pescadores e marisqueiros em situação vulnerável, muita gente passando fome, sem conseguir vender seus pescados, pessoas inseguras sem saber se havia ou não contaminação dos peixes. Foi muito triste ver a falta de apoio financeiro para o povo da pesca, vimos pessoas que trabalharam como voluntárias, que se expuseram a esse petróleo e tiveram uma série de intoxicações. Em alguns lugares isso foi notificado e em outros não. Em alguns lugares soubemos sobre a população exposta que precisa ser acompanhada nos próximos dez anos e em outros não.

Os atingidos receberam somente duas parcelas de salários mínimos e isso não repara o que foi perdido. Não repara o sofrimento de uma pessoa que tem seu referencial simbólico, emocional, laboral de vida no mar. Eu, como caiçara, me senti muito compadecida e muito solidária a essa situação. Temos ainda muito trabalho porque em alguns lugares os pescadores se organizaram, fizeram um registro à parte de seus pescadores e abriram um processo no Ministério Público Federal para conseguir algum direito assegurado, mas com a sensação de que o governo estava fazendo um favor. Essa reparação é o mínimo e as pessoas precisam ser acompanhadas nos próximos anos.


Qual cenário você encontrou nos locais atingidos?


Eu encontrei pessoas com alteração na pele, com descamação, conjuntivite química, náusea, cefaleia. Vi relatos também de confusão mental, transtorno neurológico pela exposição ao petróleo e a perspectiva é que teremos que acompanhar ao longo de dez anos porque o petróleo tem elementos que causam problemas a longo prazo para a saúde. Experiências mostram que pode ocasionar problemas renais, hepáticos, neurológicos e câncer, a depender da quantidade a que a pessoa é exposta. Precisamos acompanhar essas pessoas para fazer o nexo causal desses primeiros casos.


Qual a importância do trabalho do SUS em cenários como estes?


Quem arregaçou as mangas e se preocupou com as questões da saúde foi o SUS. Foi lá que houve preocupação de ouvir as pessoas, de cuidar dos casos. Se não temos financiamento para o SUS, não tem isso funcionando, como identificar os casos de intoxicação, como iremos identificar isso nos próximos dez anos? Como acompanhar a saúde dessa população? Pelo plano de saúde? Eu acho que esse não é o caminho.

Temos uma saúde pública que é uma conquista que tivemos, fruto de muita luta durante a reforma sanitária, e estamos vendo mudanças intensas nesse processo, um desmonte muito grande e o crescimento de planos de saúde me assusta muito. Porque o SUS é um direito, e ele é nosso. Temos que brigar muito por isso, a ter vacina, medicação, a ser acompanhado, a ter uma equipe multidisciplinar que te acompanhe, com psicólogo, nutricionista. Nesse caso do petróleo, é o SUS que estava lá se preocupando com a saúde humana.

A Fiocruz é uma instituição que é do SUS e estamos aqui para apoiar a população. A importância do SUS é fazer ouvir a voz da população que está exposta e cuidar, com respeito, compreendendo todas as questões que precisam ser melhoradas. Precisamos lutar muito para que o SUS continue público, gratuito e que seja universal. Que esse racismo institucional seja derrubado pela nossa luta. Que a gente consiga se organizar cada vez mais, se preparar para qualquer questão de desastre ou não e que tenhamos esses direitos garantidos.


De que forma um projeto de caracterização como o Projeto Povos pode contribuir para evitar um cenário como este?


O Projeto Povos é uma iniciativa incrível, como eu falei, vocês estarem fazendo a caracterização da população, mantendo viva a cultura, levantando as caras, o perfil que existe. Tudo isso é uma forma de se resguardar, mostrar que existe. Vi muito silenciamento de pescadores e marisqueiros. Acho fundamental que um projeto como esse exista, que vocês se preparem, dialogando sobre a questão do derramamento de petróleo na perspectiva de um processo de compreensão dos riscos. Tendo a chance de fazer formação previamente. A população que vi no Nordeste não teve isso, não estavam esperando.

Acho que se trata de uma oportunidade incrível, uma questão potente de garantia de direitos, de luta. E para que se possa evitar um cenário como esse, eu não tenho a resposta para garantir a melhor forma de prevenir cenários como esse. Mas, a partir do momento que estamos nos organizando, caminhamos os primeiros passos para encontrar soluções. Lutando pelo SUS, se articulando com as secretarias de saúde. Como as secretarias estão preparadas para lidar com situações como essa? São questões essenciais de levantar nesse momento. Não tem respostas dadas, mas vejo que aqui, no território, está acontecendo o caminho correto, de questionamento.





Texto: Vanessa Cancian/Comunicação OTSS

Foto: Felipe Scapino/Comunicação OTSS

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