Em um país repleto de cesáreas e casos de violência obstétrica, parteiras tradicionais ressignificam o parto e os saberes dos povos originários em nome do nascer saudável e com amor.
Ela nasceu em uma aldeia que foi devastada no Maranhão, do povo kaipó rodou mundos, morou na rua, aprendeu que o parto era sua forma de escrever sua história e essa mulher e todo seu conhecimento estiveram presentes no XI Congresso Brasileiro de Agroecologia. Ela contou histórias, ensinou sobre parto e sobre a vida fez um grande chamado para que as mulheres reconheçam sua própria força e cuidado com seus corpos.
“É no ônibus, num lugar catando laranja, na estrada e assim que eu me tornei parteira. Cada aldeia tem seu modo de ganhar seu bebê. Eu vivia num mundo longe da minha aldeia e acabei continuando a ordem e o respeito pela minha própria origem”, contou a parteira que hoje mora no estado de Sergipe e trabalha com a tradição do parto junto ao saber sagrado que envolve os terreiros de umbanda.
A Fundação Oswaldo Cruz publicou, em 2019, o estudo “Nascer no Brasil”, que teve como objetivo analisar a atenção à gestação e ao parto no Brasil e seus principais desfechos, estimar a prevalência de cesarianas e outras intervenções obstétricas e neonatais e descrever as complicações maternas de acordo com o tipo de parto, com ênfase na prematuridade. De acordo com essa pesquisa, as mães brasileiras são majoritariamente jovens, de cor parda e preta (65%), com escolaridade mediana (40% tem ensino médio), mais da metade pertence a classe C e cerca de 40% tem trabalho remunerado. Deste perfil, 80% tem companheiro e 80% também é atendida pelo SUS.
Histórias como a de Dona Chica têm sido cada vez mais resgatadas pelas mulheres de diversas regiões do país, em busca de aprender novamente com o parto tradicional e os saberes dos povos do campo, das florestas e das águas. Junto com isso, há um grande esforço do Sistema Único de Saúde (SUS) de promover a humanização do atendimento da gestação e do parto como forma de respeitar a medicina baseada em evidências e os direitos da mulher de parir com respeito.
Em um mundo dominado por uma ciência masculina e branca, Dona Chica, indígena e mulher, contradiz a indústria hospitalar e conta como se tornou parteira e incentivou mulheres a conhecerem sua própria força para lidar com os desafios do gestar e do parir.
Como a senhora se tornou parteira?
Eu, curiosa, entrei numa casinha em que estava acontecendo um parto. Desde 1969. Fui vivendo, eu era moradora de rua, eu ficava ajudando também as mulheres que moravam na rua, que não tinham como ir para a maternidade. E lá fui fazendo, fui aprendendo. Eu vou fazer parto em todo canto, nunca tive um só lugar, vou onde precisar. Hoje em dia moro num assentamento. As vezes nem conheço a mãe antes, mas me chamam e eu vou. Onde houver uma mulher lutando para parir. O parto só é um parto completo quando você já está despachada, não basta nascer, é preciso que a mãe fique bem. Nós somos de comunidade de terreiro e cuidamos desde o parto até a criança fechar a moleira.
Qual sua opinião sobre as intervenções cirúrgicas no parto ou mesmo sobre a cirurgia da cesárea?
Sobre o parto cirúrgico, eu não concordo e também concordo. Existe o sim e o não dependendo da saúde da mulher. Hoje está legal porque tem pré-natal. Antigamente a parteira também fazia com seus conhecimentos. Se a mulher fez exame, tirou ultrassom e está tudo lindo, ela ter um parto natural, vai trazer muito mais saúde e apoio para seu filho do que fazer uma cesárea e não sabe nem se curar. Agora, quando a mulher tem algum problema de saúde, aí eu concordo.
Ainda hoje há muita falta de conhecimento sobre o corpo e as vontades da mulher durante o trabalho de parto, como a senhora lida com as parturientes?
Eu sou da opinião de que se der vontade de gritar você grita, se der vontade de subir, tomar banho, sabe, de ficar de cócoras, e na maternidade as mulheres ficam amarradas feito um bicho. Eu não concordo. Agora, quando a mulher não tem condições de estar com uma parteira tradicional de ter um filho na sua casa, mas um médico que saiba lhe atender como gente, não como um bicho ou qualquer coisa. Eu já vi muita coisa errada sendo feita. E acaba tornando uma mulher doente sem necessidade.
De que forma a medicina convencional e a ciência podem auxiliar no trabalho das parteiras tradicionais? O que a senhora acha sobre essa troca de saberes?
Os médicos não nos assustam, ao contrário, é muito importante a troca das experiências, o saber científico e o popular com parteiras como eu. Tem vezes que você não tem condições de ter um filho, pode ter algo no sangue e tudo isso é preciso entender. Esse casamento de conhecimento é muito bom. Tem bebê que nasce sentado ou até mesmo em pé. É muito necessário o conhecimento de uma parteira tradicional e até mesmo de uma doula. A gente vai ajeitando e sabendo que vamos fazer o parto assim. Tanto a doula, quanto a parteira são muito importantes. Eu não me acostumei a escrever com papel nem lutar com papel e sim pela troca de experiência. É importante amar querer e não deixar de fora suas raízes.
Qual é o nome e o costume do parto que a senhora trabalha?
Nós, no meu povo, aprendemos a fazer o parto de rodilha, a gente chama de parto de croc. Coloca-se uma corda no quarto e uma rodilha embaixo. O bebe vai se ajeitando porque já está no caminho. Não tem volta nenhuma, segura na corda e se abaixa de cócoras. Depois que nasce o bebê, nasce o que a gente chamava antigamente de fatarada, e hoje em dia aprendi que chama placenta. Ela vai contraindo e sai. Bota ela em cima do bebê, não tem problema nenhum, a mulher não pode se afobar porque tem uma vida maravilhosa nos braços.
Placenta era chamada de fatarada, que é o restante, que a gente chega e guarda. E hoje estamos vendo, muitas mães estão perdendo suas placentas, porque não tem a raiz do conhecimento, eu até chamo de um povo sem nação.
Qual mensagem a senhora deixa para as mulheres que buscam parir com respeito e aprender mais sobre o parto tradicional?
Eu diria que elas nunca esqueçam que elas são mulheres, que são mães, que elas têm vida e o importante de tudo isso é que elas sejam uma mãe-gestante com saúde e parir seu filho, colocar no braço sadia, e dizer para o pai: estou feliz e segure seu filho com todo carinho. Tem uma mulher que não tem nenhum problema de saúde, ela é uma mulher rica, que Deus e Nossa Senhora do Parto vai proteger.
Saiba mais sobre a pesquisa Nascer no Brasil
“O retrato do nascimento na voz das mulheres é o tema da série em DVD Nascer no Brasil. Depoimentos emocionantes de mulheres logo após o nascimento de seus filhos dão voz aos números da pesquisa Nascer no Brasil – Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento, estudo inédito coordenado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), que teve como objetivo conhecer os determinantes, a magnitude e os efeitos das intervenções obstétricas no parto, incluindo as cesarianas desnecessárias, assim como a motivação das mulheres pela escolha do parto.”
Texto: Vanessa Cancian/ Comunicação OTSS
Foto: Eduardo Napoli/ Comunicação OTSS
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