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Projeto de saúde mental da Fiocruz avança em comunidades indígenas fortalecendo cultura tradicional e filosofia guarani

  • Foto do escritor: Juliana Vilas
    Juliana Vilas
  • 5 de ago.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 21 de ago.

Realizada a partir de parceria entre a Fiocruz e o Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) por meio do OTSS, iniciativa promove a troca de saberes em defesa do bem-viver dos povos Guarani Mbya em territórios do litoral norte de SP e sul do RJ.


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O modo guarani de ver e manter a boa saúde pode ser explicado, de certa maneira, por um termo: Nhandereko –palavra que, em português, significa "nosso modo de vida" ou, ainda, sistema cultural. Preservar a cultura tradicional, o território indígena, a espiritualidade, as rodas de conversa e a segurança alimentar, por exemplo, são condições essenciais para a promoção da saúde e do tekoá porã (o bem-viver) nas comunidades guaranis do litoral sul do Rio de Janeiro e norte de São Paulo.

 

“Saúde é acordar bem, cantar, dançar, brincar com as crianças, conversar com os mais velhos, com as parteiras… Tudo isso é saúde. O território é importante para manter nossa cultura, manter nossa dança, nosso canto, nossa alimentação e nossas vivências”, garante a jovem Suzana, 20 anos, da aldeia Rio Bonito, em Ubatuba-SP   


Ouvir os mais velhos significa manter vivos o idioma guarani e o território. A oralidade, a roda de conversa e as trocas de saberes entre as gerações pavimentam um trajeto seguro para manter e promover a saúde mental na comunidade.


Há cerca de quatro anos, começou a ser desenhada uma estratégia de cuidados em saúde mental direcionada para jovens indígenas, elaborada coletivamente por pesquisadores do Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) e do Observatório de Territórios Saudáveis e Sustentáveis (OTSS) envolvidos no Projeto de Promoção da Saúde Mental do Programa Institucional Territórios Sustentáveis e Saudáveis (PITSS), vinculado à Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da FioCruz (VPAAPS/Fiocruz).


A ideia é reunir os saberes tradicionais e as práticas científicas de saúde coletiva. Hoje, o projeto de saúde mental nos territórios Guarani Mbya impacta mais de 2,5 mil pessoas e está presente em três comunidades, mais diretamente: aldeias Boa Vista, em Ubatuba/SP, Itaxi e Sapukai, em Paraty/RJ.


Ivanildes Kerexu, liderança da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), coordenadora do Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) e liderança da Aldeia Rio Bonito, em Ubatuba-SP, participou do processo desde o início e destaca a importância de compreender e fortalecer os jovens guaranis:

“A gente vê essa necessidade de fazer um trabalho de saúde mental. A gente não entendia, mas hoje vê a importância dessa questão. O que fortalece nossa saúde é a cultura, o que afeta nossa saúde mental é o envolvimento com brancos, os grandes empreendimentos que chegam no nosso território, essas coisas que afetam nosso modo de vida... Então, fortalecer nosso modo de ser guarani, nosso modo de ser indígena, é o melhor caminho.”


Cura espiritual e Nhandereko


A ancestralidade e a espiritualidade são fatores prioritários para a saúde das comunidades tradicionais, e ocupam espaço de destaque no Nhandereko guarani. 


“A saúde guarani é mais sobre espiritualidade e cultura do que aspectos físicos, digamos assim. E o território, para nós, é saúde. Antes da colonização, a gente estava em vários países da América do Sul, como Paraguai, Argentina e Brasil. Nosso povo caminhava à procura da ‘Terra sem Males’, que os mais velhos dizem: é a terra que Deus deixou pra gente viver de frutas, verduras e do que é oferecido pela Natureza. Para viver do alimento que nos protege de doenças. O território é água boa, animais, nascentes e isso tudo é parte da nossa saúde. Os mais velhos contam: plantavam milho, mandioca, frutas, e pescavam peixes. Por isso tinha muitos alimentos, consagrados e batizados nas casas de reza. Então, todo alimento é benzido, em agradecimento, antes de ser consumido.”

Karai Jejoko Genilson, 22 anos, da aldeia Rio Bonito - Ubatuba/SP


No início do projeto foi realizado um ritual de cura, ou limpeza espiritual, na aldeia Sapukai: foram dois dias de muita reza, danças, cantos, resgates e medicinas da floresta. As lideranças permitiram a presença de alguns juruás (não-indígenas) durante parte do rito. Autorizado a filmar certos momentos, o cineasta Felipe Scapino produziu o vídeo “Nhe’e Mbojapyxakaa - Intervenção espiritual - Aldeia Sapukai Bracuí”. Assista:




“Conversamos com as lideranças na aldeia Sapukai, no ano passado, por conta de situações de sofrimento mental. E as lideranças pediram para fazer um ritual de cura, uma intervenção espiritual antes de qualquer intervenção de promoção à saúde. Foram dias muito especiais, de mergulho profundo deles com eles, com a presença de líderes guaranis de outros territórios, e de todos os jovens e mais velhos da Sapukai.” 

Helena Rodrigues, psicóloga e pesquisadora da Coordenação de Governança e Gestão do OTSS, uma das responsáveis pelo projeto


Diálogo intergeracional e bem-viver


A interação entre as diversas gerações e o diálogo entre mais velhos e mais jovens, entrelaçados pela oralidade, está no centro da estratégia de promoção da saúde nas comunidades Guarani Mbya. A preservação da cultura tradicional tende a funcionar como fator de proteção da saúde mental, principalmente entre os adolescentes, crianças e jovens adultos – hiperconectados e bem adaptados às redes sociais e rotinas online.


“Quando o jovem vai se desconectando da sua cultura, ele começa a adoecer. Então, fortalecer a relação com ancestrais e com os mais velhos é uma forma de reforçar a identidade e deixar o jovem guarani mais seguro e empoderado.” 

Marília Caponi, psicóloga do projeto de saúde mental guarani mbya 


A escuta, destaca Marília, é essencial para pavimentar os caminhos do bem-viver nas comunidades. O fortalecimento da auto-estima guarani, com a preservação da cultura e a roda de conversa intergerações demonstra bons resultados neste diálogo profundo com uma juventude diferente das gerações anteriores –que vive conectada à internet o dia todo. O fenômeno, já considerado irreversível em toda a sociedade, torna ainda mais urgente a luta pela valorização do modo de vida guarani. 


“Uma questão que afeta a saúde mental é o que se consome nas redes sociais. A juventude de hoje é diferente por conta da inserção do celular, que virou item obrigatório, e antes não existia. Precisamos lidar com a presença do celular e orientar os jovens sobre o que consumir. Eles não têm maturidade suficiente, ainda, para lidar com o mundão. A gente orienta esse jovem a consumir na internet apenas conteúdos que sejam produtivos, amorosos, afetivos, que tragam segurança, que tragam conhecimento, sabedoria. E não esses lixos mentais que são produzidos por aí…”

Marília Caponi, psicóloga do projeto de saúde mental Guarani Mbya 


“Notamos que a internet impacta a vida deles de forma substancial. Assim como as mudanças climáticas, que acentuam as diferenças sociais. Por exemplo: uma tragédia ambiental gera trauma em qualquer grupo. Mas numa comunidade tradicional, tende a gerar feridas ainda mais profundas, porque os impactos da tragédia atravessam a vida deles de diversas maneiras. Nossa abordagem é coletiva e comunitária, sempre. Construímos espaços de confiança para os jovens compartilharem emoções, desejos, rotinas, medos. Coletivamente, tentamos entender como o sofrimento é gerado e como os afeta. E, assim, desenhamos as soluções também de forma coletiva.”

Helena Rodrigues, psicóloga e pesquisadora da Coordenação de Governança e Gestão do OTSS, uma das responsáveis pelo projeto



Um outro olhar sobre a saúde mental indígena

 

A perspectiva de saúde nos territórios tradicionais deve ser mais holística e integrada do que as práticas da Medicina acadêmica praticadas em grandes centros urbanos –como a psicoterapia individualizada, que é apenas uma das abordagens possíveis em saúde mental. 


A partir do trabalho de atenção primária realizado pelos profissionais do projeto nos territórios, é possível elaborar atividades e estratégias de articulação com a rede de cuidado, a partir do SUS. E, sempre, com a participação ativa de lideranças comunitárias. 


“Fazemos saúde de um jeito diferente do modo clássico, individualizado. Todo o trabalho do OTSS já promove o bem viver e da saúde mental, já que não enxergamos os sintomas de forma isolada, mas relacionados a vários fatores psicossociais, como segurança alimentar, geração de renda e saneamento, além da proteção contra pressões externas, como as ameaças ao território e a crise climática. A saúde mental virou assunto, entrou na pauta de verdade, na pandemia. Não só nas comunidades tradicionais, mas no mundo todo.”

Helena Rodrigues, psicóloga e pesquisadora da Coordenação de Governança e Gestão do OTSS, uma das responsáveis pelo projeto


A perspectiva individual é o ponto de vista mais genérico sobre saúde mental. O FCT e o OTSS trabalham com um outro olhar, mais amplo, holístico e integrado ao território, de equilíbrio mental como resultado do bem-viver coletivo. Em artigo assinado por uma equipe de pesquisadores do OTSS, da Fiocruz e da Universidade São Paulo (USP), publicado em agosto de 2024 na revista Saúde em Debate (edição 48), essa abordagem sobre saúde fica clara. O relato detalha a experiência do projeto de intervenções territoriais e comunitárias em saúde mental em Paraty – parceria entre o Núcleo de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (NUSMAD) da Fiocruz em Brasília, o OTSS e o FCT. Leia a íntegra aqui.


“Trabalhar com os guaranis tem a ver com suavidade. E tudo tem esse tom: o tempo deles, o estilo e o ritmo. E a gente entra nessa sintonia, com muita escuta e atenção.” 

Helena Rodrigues, e pesquisadora da coordenação da Governança e Gestão do OTSS, uma das autoras do artigo e responsáveis pelo projeto 


As profissionais de saúde mental, nestes espaços coletivos, estão sempre atentas aos casos de maior complexidade. E, ainda, compartilham saberes que treinam o olhar dos profissionais indígenas para que sejam capazes de identificar os casos mais graves. Esses casos são encaminhados à rede de atenção psicossocial (RAPS) a partir do diálogo, que se inicia nas unidades de saúde indigena, com os agentes de saúde da rede. 



Saberes compartilhados e defesa do território


É fundamental, sempre, construir soluções coletivas numa perspectiva interdisciplinar: reunir a ciência e a experiência acumuladas no território com o conhecimento dos pesquisadores acadêmicos, num azeitado intercâmbio de saberes. E a defesa do território é parte importante na promoção da saúde em comunidades tradicionais, como bem observa Marcela Cananéa, coordenadora de Justiça Socioambiental do OTSS, da Coordenação Nacional de Comunidades Tradicionais Caiçaras (CNCTC) e do FCT:  “A Fiocruz, quando chega no território e olha para as práticas que as comunidades têm aqui, identifica isso como saúde. É saudável ter autonomia para sair, para pescar, para ter a sua culinária tradicional, para manter a segurança alimentar por meio das roças, das agroflorestas. Isso é o que a gente considera a nossa saúde.”










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